Coisas poderosas
Da chegada do homem à Lua até o robô que neste ano pousou em Marte, muitos fatos mudaram a nossa história.
No dia 20 de julho de 1969 eu era um garoto curioso. Ainda sou (curioso, não garoto). E aquele dia era de festa para garotos curiosos, pois o homem estaria pisando pela primeira vez na superfície de seu satélite, a Lua. Realmente, às 17h17 do Brasil, o módulo lunar Eagle pousou no Mar da Tranquilidade. Algum tempo depois, o astronauta e chefe da missão, Neil Armstrong, descia da nave enquanto pronunciava uma das frases mais célebres da história: “Um pequeno passo para um homem, um passo gigante para a humanidade”.
Enquanto isso, o garoto curioso se esforçava para acompanhar os acontecimentos pela televisão. Sim, aquela aventura estava sendo transmitida para todo o mundo. O fraco sinal gerado na Lua passava pelos controles da expedição e chegava até a casa de qualquer um que tivesse uma TV no mundo, o que não era tão comum assim naquela época. Nós tínhamos uma. Uma caixa de madeira com uma pequena tela abaulada, botões mecânicos e uma antena em V, que era ajustada cada vez que mudávamos de canal e que, com frequência, tinha um pedaço de palha de aço na ponta, para “amplificar o sinal”. Só que naquele dia nosso pequeno televisor teimava em não funcionar. Enquanto eu mexia furiosamente na antena, o máximo que acontecia era uma mudança do ângulo nos raios intermitentes que desciam da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda na pequena tela abaulada.
Desespero total... Mas pelo menos eu conseguia ouvir. O som da TV era ótimo. Três vozes se alternavam. Do astronauta, do locutor americano e do tradutor brasileiro. Foi quando ouvi algo mais... Os gritos de meu vizinho, outro garoto curioso que estava excitado com as imagens que via em sua TV, mas irritado porque não conseguia ouvir a transmissão. Em resumo, ele via e não ouvia. Eu ouvia, mas não via. Logo estávamos os dois sentados diante das duas pequenas TVs, assistindo a uma e ouvindo a outra. Foi minha primeira grande lição sobre colaboração e boa vizinhança.
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Lembrei-me dessa pequena história (pequena para mim, mas gigante para a humanidade) porque, no último 18 de fevereiro, um descendente do Eagle pousou na superfície de Marte, o planeta vermelho, depois de seis meses e meio de jornada espacial (para efeito de comparação, a Apollo 11 gastou dez dias entre chegar à Lua, cumprir a missão e voltar à Terra). Ele tem um nome sugestivo: Perseverance (“perseverança”). E não estará sozinho na superfície do planeta. Lá já está o Curiosity, que chegou em 2012. A missão de ambos é a de rastrear formas de vida, o que daria pistas sobre se estamos sozinhos no Universo ou não. O Perseverance carrega também algumas mensagens. Uma é uma frase inspirada em um discurso do presidente Theodore Roosevelt: “Ouse coisas poderosas”. Boa... Mas o que me chama atenção é a diferença de impacto dos dois acontecimentos entre as pessoas aqui na Terra. A primeira viagem parou o mundo. Esta agora mal foi comentada.
A tecnologia envolvida atualmente é resultado do que há de melhor na engenharia espacial e de processamento de dados, e a missão pode ser conclusiva para nossas ambições futuras, como humanidade. Meu atual vizinho, entretanto, só ficou sabendo depois que eu comentei com ele. Imagino que isso aconteça por dois motivos. Primeiro pelo fato de que os avanços científicos e tecnológicos se tornaram commodity em nossas vidas. Qualquer um que tenha um smartphone no bolso utiliza no dia a dia muito mais tecnologia do que todos os envolvidos com a primeira viagem à Lua. Armstrong e Aldrin fotografaram um ao outro, passeando na Lua, com câmeras de filme. As rotas e órbitas eram calculadas com régua de cálculo (sabe o que é?), o que só aumenta o valor daquela aventura. A segunda razão é o desvio de foco. Em 1969 estávamos em plena Guerra Fria, a disputa ideológica entre os Estados Unidos e a União Soviética era travada, também, por meio da ciência e da corrida espacial.
Esse foi o legado positivo daqueles tempos sombrios. Agora a guerra é outra. A chegada do Perseverance a Marte teve a colaboração de vários países, incluindo China e Emirados Árabes. A guerra contra o vírus também só poderá ser vencida com a colaboração de todos. E não me refiro à troca de conhecimento entre os cientistas. Estou falando de meu vizinho. E do seu. E também de mim e de você. Lembro-me de meu amiguinho dizer algo como “depois disso, tudo é possível”. E me lembro de que os três astronautas que foram à Lua na volta ficaram 21 dias isolados, incomunicáveis, em quarentena. O receio era de que eles tivessem trazido algum vírus espacial em seus corpos. Não trouxeram. Não precisamos que os vírus venham do espaço. Nós os criamos por aqui mesmo. Mas vamos vencer. Afinal, depois daquilo, tudo é possível. Inclusive coisas poderosas
EUGENIO MUSSAK gosta de ciência. Escrevia para a Superinteressante quando nasceu a Vida Simples.