Contexto atual, cultura e dever de casa
Todo o contexto atual de debates, prisões, solturas, acusações e discursos exaltados me levou a refletir sobre a cultura brasileira e como ela é uma armadilha para sabotar nosso próprio futuro, usada como um álibi para esconder nossos “pequenos” deslizes.
Essa mesma cultura influencia diversos aspectos da nossa vida, inclusive profissional e organizacional. Uso algumas características culturais identificadas no trabalho de Barros & Prates que influenciam o jeito brasileiro de administrar, e que acredito podem refletir muitas questões de nossa própria casa.
O primeiro aspecto sobre o qual reflito é a “concentração do poder” que tradicionalmente se vale do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Mas este aspecto parece estar sendo questionado pela sociedade que tem exigido mudanças, inclusive pela própria quebra de confiança nas instituições de poder. Não vivemos em um ambiente de “igualdade”, mas o “sabe com quem está falando” tem perdido seu espaço especialmente com as novas gerações que têm um posicionamento diferente. Entretanto, as organizações são multigeracionais assim como as famílias e, em muitos casos existe uma descaracterização do centro de poder gerando uma percepção de que “todos podem” ou de falta de comando.
Outra característica de força na cultura é o “personalismo”. Acredito que a perda do referencial das instituições, possa reforçar o caráter individualista da cultura brasileira, que reconhece em algumas pessoas os “heróis” em detrimento do sistema institucional no qual estão inseridos.
O “paternalismo” é outro traço cultural identificado, caracterizado pelas relações sociais entre as pessoas, grau de proximidade, amizade e relacionamento, que podem favorecer o uso do poder para favorecimento o grupo envolvido. Normalmente funciona como um jogo de troca e controle usando a possibilidade de perda/recompensa. São jogos de favorecimento que não precisamos ir longe para identificarmos em todos os níveis do país.
Os autores destacam a “postura de espectador” como característica cultural, em duas principais vertentes: mutismo e baixa consciência crítica. Esta característica é explicitada por pouca iniciativa, baixa capacidade de empreender ações e de transferência de responsabilidade da solução de problemas para outros. Baixo “empoderamento” pessoal e do grupo. É o contínuo discurso do “Deus ajuda” ou “culpa de Satanás”, vivendo na eterna expectativa de uma sorte ou da esperança sem não tomar a iniciativa e assumir a responsabilidade por fazer acontecer. Não vamos confundir a realização de manifestações por uma parte da população e generalizar como um traço cultural.
O “formalismo” é outro traço da cultura brasileira, representada pela necessidade de especificar tudo, criar leis para qualquer coisa e tentar controlar se “uma prisioneira deve ou não ser liberada das algemas quando estiver em trabalho de parto” através de uma regulamentação. A cada coisa que acontece, alguém inventa uma nova regra e ficamos mergulhados em textos e mais textos que sempre deixam brechas aos questionamentos dos advogados, ao invés de sermos pautados por princípios sólidos. Mas é uma busca por resultados imediatistas do controle e não pelo exercício da consciência através da educação. E assim, esta característica se reflete em muitos hábitos nossos de pensar no aqui e agora em detrimento das possibilidades do que está por vir. Embora uma pessoa tenha uma crença religiosa, decide fazer uma “simpatia” só para garantir. Em linhas gerais aceitamos as regras estabelecidas mas as exercemos de maneira que melhor nos convém. Assim, a lei passa a ser defendida e cobrada na sua aplicação aos “outros”, mas os “desvios pessoais” não se enquadram no mesmo critério de julgamento.
E isso nos leva a um outro traço cultural que é a “impunidade” que reforça as posições de poder, já que são seus detentores que são imunes a julgamentos e penas. Este traço apenas reforça a tendência de maior formalismo com mais leis, a posição de expectador do brasileiro e a espera do salvador “herói” para mudar o mundo. Falava antes em mudança, mas será que conseguiremos passar para nossos filhos uma nova forma de agir diante do mundo? Como o meio atual vai moldar a cultura do futuro?
Bem, chegamos ao dever de casa... Minha filha adolescente está chateada porque teve de “enfrentar” os colegas que estão se mobilizando para convencerem os pais a fazerem um abaixo assinado em prol de algumas reivindicações para a escola. Ela me listou alguns aspectos do que os colegas querem, mas entre eles um em particular me chamou a atenção: a professora de matemática passa uma lista de exercícios em uma quinta para que seja apresentada na quita da semana seguinte. Como "todos sabem" que a maioria deixa para fazer no último dia, ou seja na quarta, véspera da entrega, a professora deve ser proibida de passar novo exercício de na terça feira seguinte. Além disso, final de semana não é para estudar...
Em um primeiro momento eu tive vontade de rir dessas coisas, mas ao ver que pais estariam aderindo ao manifesto passei a refletir sobre o tema. A ênfase na facilidade imediata e no curto prazo nos leva a tomar decisões que são muitas vezes prejudiciais para o futuro de nossos filhos e para seu sucesso profissional. Nossa tendência à superproteção, a necessidade de evitar suas frustrações e até a incapacidade de estabelecer limites e autoridade.
Uma cena que não é difícil de imaginar: uma professora de um curso de inglês alertando a mãe de um menino sobre o quanto ele é “alegre”, mas que não terá recuperação possível porque ele não se dedica e não cumpre as obrigações. Em resposta a mãe com um sorriso pálido responde “esse menino não tem jeito”, em tom quase de brincadeira enquanto passa a mão pela cabeça o moleque. Uma postura de aceitação, de conivência com a falta de compromisso do filho, afinal "tadinho"... Quando vamos entender que existem obrigações a cumprir e que precisamos ter responsabilidade com as entregas? Tudo começa com um simples dever de casa e entender que não é opcional, mas “uma obrigação”.
Mas será que não fazemos ainda mais? Pensemos em um adolescente que não faz seus deveres, fracassa etapa após etapa na cara escola particular que o pai paga, e no final do ano vai ser reprovado. Na balança dos pais está o caro investimento de um ano nos estudos do filho (repetir significa “jogar dinheiro fora”) mas a necessidade de repetir para realmente aprender. Existe a opção que alguns assumem de mudar o aluno de escola para que não seja reprovado. Não digo que a decisão é certa ou errada porque vai variar de acordo com o contexto, mas muitas vezes comprometemos a efetividade de conhecimento em detrimento de “perder um ano”.
Ao meu ver não se trata de perder dinheiro ou tempo mas de ganhar responsabilidade, conhecimento, compromisso com o futuro. Trata-se de investimento sim e não de despesa... investimento para que seu filho tenha sucesso um dia aprendendo com seus insucessos de hoje.
De que adianta reclamar da cultura brasileira, da situação do país, dos rumos institucionais, quando somos coniventes com este tipo de comportamento? Quando nós reforçamos esses traços culturais em nossas casas e escolas?
Certo estava Gandhi ao dizer “Quer mudar o mundo? Comece por você”.