Da Felicidade e do consumo no neoliberalismo
Na última semana tive tempo para ler muitas coisas e refletir. Entre tantos livros, revistas e blogues, li um artigo excelente de Adriel Dutra, e uma frase ficou ecoando em minha cabeça por dias: “O Capitalismo é o Senhor da Impotência, reina soberano a partir do entristecimento dos corpos”.
Essa verdade caiu como um tijolo sobre mim, pois também creio ser por meio da tristeza, do mal, do que falta, do horror e da culpa que o capitalismo se pauta para criar as “iscas” e manter todas as pessoas “fisgadas” e obedientes às normas e regras do consumo. E muita publicidade. Não percebemos que isso é uma espécie de escravidão, e que estamos todos sempre “precisando” de “algo ou de alguma coisa” e estamos dispostos a trabalhar mais e mais, ganhar mais dinheiro e comprar esse algo que nos falta. E a verdade é que esse ciclo é infindável, já que consumimos cada vez mais coisas que já possuímos, consumimos desejos e modos de vida fabricados, muitas vezes estéreis e vazios, na esperança de suprirmos o que falta. Consumimos cada vez mais esperando encontrar a felicidade ou a própria vida e, ao final, morremos sem sequer refletirmos sobre o que realmente significam Felicidade e Vida.
O capitalismo em seu estágio neoliberal forma exércitos de escravos desejantes, numa espiral insana de consumo, foi o que extraí do texto de Adriel Dutra. E o pior: os escravos não se rebelam e não conseguem se ver como oprimidos. Adriel escreve: “paradoxalmente, os escravos e oprimidos são os próprios opressores na medida em que, cegos às sutilezas com que vão sendo tornados tristes e lançados no buraco da dívida, veem uns nos outros a causa de seus próprios infortúnios”.
Essa leitura fez-me lembrar dos meus tempos de universidade, das minhas leituras de Epicuro de Samos. Este pensador grego acreditava que todos podem encontrar um meio de ser felizes, e que o problema é que procuramos no lugar errado. Epicuro amava os prazeres, a alegria e buscava uma vida feliz. Para o filósofo, nós não sabemos o que nos faz felizes e, por isso, acabamos atraídos por bens materiais, acreditando que eles nos trarão felicidade, mas muitas vezes estamos errados. Nem sempre desejamos aquilo que necessitamos e muitas vezes desejamos tudo aquilo de que não necessitamos. A prova disso é o nosso comportamento de consumo desenfreado em nossa era neoliberalista.
Todos nós conhecemos pessoas que se sentem felizes gastando em shoppings centers e ao final do mês sentem-se inseguras e tristes, ou preocupadas com as faturas dos cartões de crédito. Isso as leva a entrar numa espiral ainda pior, pois passam a contrair dívidas e trabalham apenas para isso, suas vidas tornam-se dedicadas exclusivamente a esse processo circular e infindável de prazeres fakes. Sem falar que grande parte dos bens materiais adquiridos por impulso muitas vezes acabam esquecidos num canto da casa ou da gaveta. Todos nós sofremos um pouco disso, mas só percebemos, e por alguns instantes apenas, nos outros. Epicuro diria que esse comportamento ocorre apenas porque não compreendemos, nós mesmos, as nossas necessidades e, por isso, buscamos avidamente substitutivos.
A receita de Epicuro para fugir aos substitutivos e encontrar o caminho da felicidade é simples: ter amigos, ter liberdade e ter uma vida reflexiva. Contudo, o que Epicuro considerava amizade está muito além de ter conhecidos que chamamos amigos e falar com eles de tempos em tempos. Ao contrário, a amizade deve ter laços fortes e você deve dedicar-se aos seus amigos e vice-versa, convivendo e vivendo com e por eles. Em relação à liberdade, essa deve consistir em independência financeira e de ideias, e não importa se essa liberdade te faça parecer maltrapilho ou pobre, o que interessa é que você viva longe dos grilhões impostos pelo sistema que rege o dinheiro e as leis sociais que escravizam. Em relação à vida reflexiva, ou “vida bem-analisada”, Epicuro diz que precisamos de tempo para refletir sobre aquilo que nos preocupa: se temos tempo para pensar, nossas ansiedades diminuem e somos capazes de encontrar o equilíbrio e a solução. Para isso, precisamos nos afastar das distrações e da mecânica do comércio e buscar o tempo e o lugar para pensar.
Mas, se é tão simples a receita da felicidade, porque não somos todos felizes? Para Epicuro, a publicidade e a dinâmica do comércio é que não permitem que as pessoas sigam essas três regras simples de felicidade. O mundo da publicidade cria associações implícitas (ou sub-reptícias) entre aquilo que nos quer vender e as nossas verdadeiras necessidades. E aqui voltamos ao início, ao texto de Adriel Dutra, e à verdade acachapante do nosso estágio capitalista neoliberal. A publicidade é tão sedutora e tão hipnotizante, e tão incessante, que as pessoas se veem mais retratadas nas imagens fictícias de felicidade criadas do que na própria realidade que vivem, veem-se projetadas nessas imagens e consomem para parecerem e terem a felicidade que se promete ou que aparece nessas publicidades. E a tentação é tentacular e profunda, além do fato de não haver tempo para refletir: um desejo, uma ideia de felicidade é sobreposta a outra, e a outra e a outra, ininterrupta e infinitamente, e não resta nada além de absorver essas ideias e consumir sem reflexão. Até a morte.
E... onde estão os amigos? Talvez a convivência com eles nos fizessem mais felizes e não precisaríamos buscar a felicidade no consumo. Mas, onde estão? Minhas reflexões trouxeram-me a uma cruel realidade. Os “amigos” estão nas redes sociais. Não é a amizade epicurista, não é a amizade do contato, do convívio, da vida partilhada. Não é a amizade comunal, mas uma outra: a da dispersão, a da distância necessária, a do individualismo exacerbado, a do não envolvimento e da autopublicidade. Os “amigos” de Facebook, de WhatsApp, do Instagram ou de outras redes são pessoas que se ligam a nós por “curtidas”, por “afinidades” que sabemos nem sempre serem verdadeiras. Não somos amigos na diversidade, no confronto de diferenças, na tolerância e na capacidade de construir algo pelo pensamento, pela convivência, pelo respeito, pelo saber compartilhado. Sequer nos encontramos nos cafés, como antigamente. E quando nos encontramos permanecemos, ainda assim, conectados nas redes, mas desconectados da realidade e das pessoas, de suas essências.
Nas redes, o “entristecimento dos corpos”, do qual fala Adriel, é substituído pela “felicidade dos corpos”, resultado de uma ideia tão nociva quanto a da felicidade pelo consumo desenfreado. Prevalece a ideia de que devemos sempre parecer felizes, e as imagens o mostram. Quanta felicidade! Quanta abundância nas fotos e imagens do Facebook! Mas não seria essa outro tipo de felicidade comprada? Fake? Essas questões me fizeram refletir por dias seguidos. Por isso voltei a Epicuro. Porque é preciso parar e pensar sobre si mesmo e sobre o que estamos fazendo. É preciso pensar uma, duas, dez, cem vezes naquilo que estamos nos esquecendo, o essencial. Mas para entendermos isso e enxergarmos com sabedoria que estamos no caminho errado é preciso mais que uma leitura passageira do filósofo de Samos ou do belo artigo de uma pessoa brilhante. É preciso ser lembrado constantemente, ou nos esqueceremos e cairemos novamente nas mesmas armadilhas e ilusões da publicidade.
O excesso de publicidade e de anúncios do capitalismo atual, jogados incessantemente em nossas vidas em todos os lugares e de forma invasiva nas redes faz-nos esquecer daquilo que realmente necessitamos! Por isso, precisamos combater essa publicidade, anulá-la de nossas vidas, substituí-la por outras reflexões, lembrar que ela não traz essa tal de felicidade, mas apenas o “entristecimento dos corpos” e a “escravidão do consumo”. Isso pode parecer ingênuo, numa era em que essas ideias de consumo X felicidade estão profundamente enraizadas nas pessoas e prega-se o individualismo e o sucesso. É uma tarefa. De Sísifo. Mas é uma tarefa. Que estou tentando colocar em prática.