Dia Internacional da Mulher - Desigualdade e Exaustão Feminina
Nesse dia, que é essencialmente um dia de luta por direitos fundamentais, quero homenagear a Dona Florinda e a Rosa que nos receberam em sua casa no pequeno Pueblo de San Juan, na Guatemala, durante minhas férias em fevereiro deste ano.
Todos os dias as duas já estavam acordadas antes dos primeiros raios de sol, preparando as tortillas que garantem as refeições da família e dos hóspedes. Elas só iam dormir após garantir que todos estavam bem, que as pessoas e os animais estavam alimentados, as plantas regadas, as crianças limpas, as roupas secas, as camas arrumadas, a despensa abastecida, e a massa para as tortillas do dia seguinte pronta para começar tudo novamente.
Dona Florinda com 65 anos quase não fala, não tem mais esperança de mudança, seus olhos opacos já não deixam transmitir o mínimo sinal de desejo. Rosa com 27 anos, é nora de Florinda, casou-se e foi morar na casa dos sogros e, seguindo um ciclo de repetição, tornou-se mão de obra gratuita. Seus olhos ainda brilham, se interessa quando mostro vídeos do carnaval no Brasil, fotos da minha cozinha e me ofereço para ajudar com as tortillas.
Saí de lá me perguntando, até quando os olhos de Rosa ainda brilharão? Sem oportunidades, sem escolhas, sem qualquer reconhecimento do seu trabalho exaustivo e invisível, sem possibilidade de romper o ciclo que alimenta essa divisão sexual do trabalho que injustamente explora e exaure física e mentalmente mulheres em todo mundo.
Sempre que viajo registro essas situações e gosto de dizer que do Jequitinhonha ao Himalaia é sempre igual e injusta a realidade das mulheres, seja no campo ou na cidade.
Nesse dia de luta nossa pauta é extensa e diversa. Talvez minha rede e grupo de amigas e amigos pensem que a realidade da Dona Florinda e da Rosa seja algo localizado em uma determinada classe social, seja em função das questões culturais da Guatemala, dos traços machistas da sociedade maia ou da influência espanhola e que nossa realidade talvez seja diferente.
É claro que certamente as mulheres da minha rede e, eu própria, temos condições socioeconômicas muito melhores que nos conferem inclusive alguns privilégios. Entretanto eu pergunto, quantas de nós nos sentimos exaustas? Quantas de nós protelamos nossos planos? Quantas de nós vamos deixando nossos desejos para depois? Quantas de nós temos visto nossos olhos ficarem mais opacos a cada dia?
A exaustão feminina é um tema muito relevante e atual.
A ONG Think Olga ouviu 1078 mulheres e essa escuta revelou que 60% delas relatam:
O adoecimento é evidente e naturalizado pelo sistema de saúde e assistência social que ainda não têm se debruçado sobre as causas efetivas desses sintomas predominantes.
Essa pesquisa revelou também que os principais fatores de adoecimento feminino são:
Quando nos deparamos com essas causas de adoecimento elas nos parecem obvias, toda mulher sofre com pelo menos uma dessas questões.
Falando aqui com a minha rede, temos muitas mulheres que se sentem desvalorizada no trabalho, que vivenciam as microagressões diárias de interrupção da fala, de desvalorização do seu conhecimento técnico e da sua capacidade de liderança, além da injusta disparidade salarial.
Sejam profissionais técnicas, lideranças ou executivas, todas nós temos que aprender a lidar com essa realidade e é fato que para obter sucesso na carreira gastamos sempre muito mais energia que os homens para atingir objetivos semelhantes, mesmo com as mesmas competências. Para as nós mulheres ser respeitada e reconhecida em determinados ambientes de trabalho não é algo trivial!
Além disso, nós ainda acumulamos as responsabilidades pelos cuidados com a casa, família, filhos, pets, plantas e tudo aquilo que dá trabalho, não confere status ou poder e não gera remuneração.
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Segundo o IBGE – 2018
As mulheres empregam 73% de tempo a mais que os homens em trabalhos domésticos e de cuidado. Tarefas domésticas, exercício da maternidade, cuidado com parentes idosos, doentes ou portadores de deficiência, são apenas alguns exemplos. Essas são tarefas que demandam o dobro do tempo e esforço em relação aos homens e às vezes exigem dedicação exclusiva, contínua e não remunerada.
Claro que ao direcionarmos nosso olhar para as mulheres negras, periféricas, mães solos e produtoras rurais essa conta fica ainda mais cruel. Não estou me comparando, mas estou me colocando na mesma frente de luta.
Portanto, se mobilizar verdadeiramente no dia 08 de março pelo Dia Internacional da Mulher é se colocar na frente de batalha por direitos fundamentais.
Lideranças, conselheiros, empresários, lideranças políticas, legisladores e toda a sociedade precisam debater e encaminhar medidas efetivas de equidade de gênero e essa é uma urgência civilizatória.
Segundo dados do Fórum Econômico Mundial se continuarmos no ritmo que estamos levaremos 131 anos para acabar com as diferenças de gênero. No Brasil a diferença econômica é gritante e a diferença de participação política é enorme e representa um grande limitador para os avanços necessários.
Vivemos em um país patriarcal e o machismo estrutural nos leva a naturalizar os papéis históricos estabelecidos para homens e mulheres, ignorando consequências como uma maior subordinação e desvantagem competitiva impostas às mulheres.
Ao mesmo tempo supervalorizamos a meritocracia e essa visão dificulta, sobretudo no ambiente corporativo, as discussões de equidade e inclusão. Hoje no Brasil apenas 38% dos cargos de liderança são ocupados por mulheres, apesar das mulheres já terem superado os homens em tempo de estudo e pesquisas demonstrarem que empresas mais diversas tem 39% de chances de obter melhores resultados.
As empresas que avançarem nessa pauta com certeza sairão na frente e terão maiores chances de sucesso frente ao já previsto “apagão de talentos”. Para que esse avanço seja efetivo não basta abrir vagas destinadas às mulheres, embora isso seja importante. É necessário olhar para as necessidades efetivas de apoio na busca por igualdade. A licença paternidade de 6 meses é um exemplo. É preciso reconhecer que o cuidado com a criança é papel dos pais e não somente da mulher. Criar horários flexíveis, pensar em uma jornada adaptada a essas necessidades, oferecer benefícios que auxilie no cuidado e proteção das crianças e, sobretudo, atentar para a garantia da igualdade de oportunidades e de carreira.
Investir fortemente numa cultura organizacional verdadeiramente inclusiva e que envolva os líderes nesse debate promovendo fóruns de reflexão sobre os vieses inconscientes, os comportamentos naturalizados, as microagressões e as atitudes e decisões que reforçam a desigualdade também são ações fundamentais.
Todas as empresas hoje falam em ESG mas esquecem que essa sigla simples traz consigo desafios complexos, reais, concretos e que não serão enfrentados apenas com belos relatórios e investimento em marketing. A equidade de gênero é um dos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS 5) e, assim como muitos outros, não tem obtido o progresso necessário para atingir suas metas.
É fato que 2030 é um futuro muito próximo para uma realidade ainda tão distante. Precisamos sim aproveitar esse dia de hoje como um marco mobilizador e fazer dele um importante momento de reflexão.
Infelizmente não mudaremos nossa realidade com flores, bombons e joias!
Referências:
Fundadora - RC8 Negócios Inclusivos
9 mObrigada Flávia Soares por traduzir muito bem o que vivemos! Como mulher negra em posição de liderança cada dia mais reflito, estudo, vivêncio e enfrento essa realidade. Mas nessa trajetória do universo feminino aprendi a buscar e ser o apoio de outras mulheres. Parabéns pelo artigo! 👏🏾👏🏾