e se as perguntas estiverem erradas?

e se as perguntas estiverem erradas?


No artigo de 2013 de Larry Cuban, "Por que tantas mudanças estruturais nas escolas e tão pouca reforma na prática docente?", no campo da educação: apesar de numerosas mudanças estruturais implementadas nas escolas ao longo dos anos, há uma notável estabilidade na maneira como os professores ensinam. Cuban argumenta que essa estabilidade é largamente devida às condições de trabalho dos professores, à inércia institucional e, paradoxalmente, a adaptações sensatas feitas pelos próprios professores diante da complexidade dos múltiplos objetivos e estruturas escolares. A educação é complexa, apesar de muitos a enxergarem como um problema a ser resolvido.

A escola brasileira em um século, deixou de ser religiosa para se tornar laica, houve uma expansão do acesso à educação, buscando a universalização da educação básica, reformas curriculares tornou a instituição laica e independente de religião, profissionalização dos docentes, concursos públicos e de títulos para a seleção docente, políticas para a inclusão e diversidade, dentre outras transformações que autorizam a chamar o viajante no tempo do Salman Khan de mentiroso, caso ele ainda insista em dizer que nada mudou na escola do século XlX para cá. As mudanças aconteceram e foram bem significativas.

O que o autor do artigo argumenta é que as práticas pedagógicas centradas no docente, tarefas para casa, discussões com toda a sala e poucas atividades colaborativas com pequenos grupos, salas de aulas seriais, organização por idade, avaliações com propósitos de atribuir uma nota, ainda constam na maleta de ferramentas da grande parte dos docentes, por exigências das próprias lideranças. De certo modo, a organização institucional da escola para a certificação dos estudantes leva a essa prática.

Desde o século XIX, itens como livros didáticos, filmes e retroprojetores, além de rádio e televisão educativa, foram adotados como inovações tecnológicas capazes de mudar a prática pedagógica centrada no docente.

Com o avanço tecnológico nos setores de trabalho, comércio e entretenimento no final do século XX, essas inovações também se fizeram presentes nas escolas, culminando nos recentes movimentos em direção ao ensino online e escolas cibernéticas. No entanto, apesar de muitas salas de aula do ensino básico estarem atualmente equipadas com laptops, computadores de mesa e dispositivos móveis, a maioria dos estudantes ainda vivencia um ensino que segue um formato tradicional, que inclui tarefas de casa, exercícios de livros didáticos, planilhas, discussões em grupo, atividades em pequenos grupos e avaliações. Em geral, desde o início do século XX, os docentes têm adaptado essas inovações tecnológicas para manter ou ajustar suas práticas pedagógicas em vez de implementar reformas radicais na maneira de ensinar (Cuban,2013).

O quadro branco interativo, apenas para pegarmos um exemplo, foi introduzido nas salas de aula na década de 90. Na verdade, poucas tecnologias digitais tiveram tanto sucesso na sala de aula em termos da sua distribuição para dentro das salas de aula. A Inglaterra rapidamente chegou a 75% das salas de aulas com quadros interativos, Dinamarca (50%), EUA (35%) e vários outros países seguiram a mesma lógica de implantação.

O interessante é que os quadros interativos foram desenvolvidos para o setor empresarial, tempos depois os formuladores de políticas públicas, fabricantes, lobbystas e "influencers de feiras" passaram a defender a ideia que tais quadros revolucionariam a educação e os...docentes. A mesma afirmação fora proferida por Thomas Edson com o nascimento do filme, Bertold Brecht com o nascimento do rádio e tantos outros com as tecnologias seguintes. Durante a covid-19 escutávamos isso em relação às plataformas e as revoluções que se seguiriam pós pandemia. É um mantra: as mudanças estruturais e enriquecimento tecnológico das escolas levarão a transformação dos docentes.

Mais uma vez, fizeram os investimentos massivos para a compra dos quadros sem nenhuma pesquisa sobre os impactos desses quadros na aprendizagem dos estudantes. Os compradores não estão muito preocupados em saber se melhorarão a aprendizagem, de que forma? Quais as considerações dos pesquisadores? Dos docentes? Dos estudantes...nada. São sempre afirmações considerando a "inovação" uma panacéia para todos os males, a cura.

As primeiras pesquisas sobre o impacto dessas ferramentas na aprendizagem dos estudantes, foram feitas mais de uma década depois e com as mesmas afirmações que já conhecemos a cada rodada de implementação de alguma tecnologia nas escolas: a) dependem dos educadores, b) os resultados dependem da abordagem pedagógica, c) necessidade de investimento na formação dos educadores. Mesmo assim, muitas dessas pesquisas foram realizadas com um estudante, dois ou três, umas sequências didáticas e conclusão. Acontece que a sala de aula da educação pública não funciona no modo pesquisa. Funciona no modo "muvuca": todos ao mesmo tempo e agora.

Para a implementação bem sucedida e o seu uso efetivo nas instruções, os professores precisam de apoio técnico contínuo e treinamento adequado , o que nem sempre é viável devido a restrições de tempo e orçamento. Portanto, é importante que a escola desenvolva uma cultura do quadro interativo, que é o pré-requisito para a adequada realização da importância da formação do professor

Toda um a cultura com suporte técnico, infraestrutura adequada, tutoria, habilidades pedagógicas específicas, currículo passou a ser defendida para que "o uso " do quadro ganhasse eficácia. Perceba que todas essas dimensões acompanharam as necessidades para o sucesso de todas as tecnologias nas escolas.

Os professores muitas vezes não conseguem tirar proveito das características do quadro branco interativo desde a forma básica de aplicação até usos mais sofisticados no ensino e na aprendizagem, por conta própria (Koenraad, Çelik, Higgins, & Hillier, 2015).

Sem tudo isso, como consta na literatura de pesquisa sobre os resultados desses quadros nas salas de aulas, os educadores continuaram usando como meros substitutos dos quadros negros.

Hoje mesmo, eu vi um poster de Ricardo Amorim de um quadro interativo e com a seguinte legenda posta por ele : aula na china há 5 anos. Não, não era aula na China há 5 anos. Na verdade era um vendedor desses quadros fazendo uma demonstração, provavelmente para quem tem o poder de comprar para as escolas, dos potenciais desses quadros. bastava conhecer uma sala de aula para diferenciar os senhores de cabelos grisalhos e roupas sociais como "supostos" estudantes. De fato, são muitos os potenciais. Multimídia, animações, aplicativos, imagens com qualidade, etc... mas potencialidades naõa fazem mágica na educação. Os docentes fazem mágicas, caso exista.

Claro, ter num equipamento as esperanças frustradas do rádio, da televisão do cinema e do computador, leva a acreditar que alguma mudança na qualidade da escola aconteceria; se não fosse os problemas técnicos frequentes relatados sobre o funcionamento desses quadros e, mais uma vez, a formação dos docentes para explorarem as funcionalidades mais complexas, o tempo para elaboração do material para uso do quadro, reclamações dos estudantes sobre as confusões provocadas no tempo da aulas por problemas técnicos ou de falta de preparo dos docentes para o uso, reclamação dos docentes por aumento da complexidade no intervalo da sua aula, sem benefícios de aprendizagem que compensassem.

É mais um exemplo da Escola lutando para (1) colocar a educação em sintonia com o local de trabalho, onde elas são obrigadas a usar tecnologias atualizadas; (2) mudar as escolas de ilhas isoladas de conhecimento não funcional e desconectado da vida para uma aprendizagem ativa e significativa; e (3) aumentar a produtividade e maiores conquistas com menor insumo (Cuban, 1993). Por mais que se acuse a escola de não fazer isso, a história da educação é a história desses ciclos, seja em relação à tecnologias específicas, as práticas pedagógicas e aos currículos. Na verdade, nenhuma instituição mudou tanto estruturalemente quanto a instituição escolar. Do mesmo modo, nenhuma instituição moderna foi tão atacada quanto a escola, como disse o colega Flavio Brayner (2021). A escola é atacada por grupos de direita e de esquerda ( "como aparelhos reprodutores da desigualdade social").

Em 2004 eu fiz uma pesquisa para compreender os limites da atividade docente mediada por computadores. A quantidade de vezes que os docentes interrompiam a realização dos propósitos de suas atividades de ensino para consertar telas de computadores, teclados, mouses, programas que travavam era bem mais do que o tempo dedicado ao ensino. Nas entrevistas sempre aparecia que a complexidade não compensava os resultados na aprendizagem. A mesma fala que aparece em muitas entrevistas com docentes: o gap entre a expectativa e os resultados de aprendizagem é desanimador. A pesquisa foi realizada no contexto real de sala de aula com várias turmas e vários docentes, desde o infantil ao médio. Durou meses e a minha máquina ficou quase um mês sem gravar nada para que se acostumassem com ela. Nem os estudantes tinham paciência para as quebras permanentes de suas atividades. Vulgo: "não funciona, professora".

Numa divulgação boca-a-boca o êxito das atividades mediadas por essas tecnologias seria um forte elemento de convencimento para outros docentes adotarem na sua rotina. Do mesmo modo, o desânimo funciona como uma ducha de água fria. O quadro interativo presente em todas as salas é um fator positivo, já que os docentes não precisam se deslocar para acessá-los, uma vez que sabemos que a frustração de não ter os equipamentos à disposição onde e quando se organizam para usá-los, é um dos fatores que os afastam o uso.

A Escola é complexa, embora insistam em enxergá-la como apenas complicada. Será que cabe olhar para problemas complexos com as crenças de se acreditar que um dia poderemos zerar tudo na Escola e promover uma transformação estrutural que traria uma nova escola do século XXl, como muitos acreditam? Será que as perguntas estão corretas? As políticas públicas que prometem mudar o que os estudantes e docentes fazem apenas com reformas estruturais e compras de equipamentos algum dia se realizarão? Será que essas pessoas compreendem a complexidade das instituições de educação espalhadas em trilhões de territórios diferentes,com problemas e necessidades diferentes ?

Embora as estruturas da escolaridade e do ensino em sala de aula tenham de fato mudado ao longo dos últimos dois séculos, tem havido uma continuidade profunda tanto na escolaridade como no ensino. Será esta notável estabilidade e falta de mudanças fundamentais ou uma “reforma real” no ensino e aprendizagem devido às condições de trabalho, inércia, resistência obstinada de professores, ou, talvez, adaptações sensatas à complexidade de múltiplos objetivos e estruturas escolares no século passado? (Cuban, 2021).

Eu sempre pergunto o seguinte: quando chegará o dia que a gente passará a ver essa resistência dos docentes a certas mudanças, como um espírito de sabedoria? Olhem para as reformas que estão propondo para o ensino médio brasileiro. Lá no chão da escola, os docentes sabem o que dá certo e o que não dá, já de saída. Não porque tem bola de cristal, mas pelo saber experiencial de séculos, por já terem participado de muitos governos, por já terem acompanhado muitas promessas. Uma grande parte dessa resistência pode colocar na conta da resistência foucaltiana à submissão das subjetividades não explícitas de certos setores da sociedade civil organizada e de grupos políticos.

Estruturalmente temos mais de 50% da formação docente em cursos 100% EAD e de baixíssima qualidade ( por favor, os defensores dessa modalidade percebam que essa certificação é dada pelos órgãos oficiais de avaliação. Eu não estou afirmando nada diferente do INEP), salários aviltantes, projetos de capacitação docente entegues à iniciativa privada e com poucos resultados, carga horária excessiva, profissionais lecionando disciplinas para as quais não foram formados, uma denúncia constante de pressão por nota e aprovação( independente da avaliação), currículos exigindo a formação de 1000 competências em 60 horas. Enquanto essa estrutura permanecer, docentes não executarão nenhuma "reforma" pedagógica, por impossiblidade mesmo. Já pararam para pensar que não é só "preguiça", é impossibilidade mesmo?

porque os estudiosos raramente examinam os erros dos formuladores de políticas ao responder à questão de por que, em meio a tantas mudanças estruturais na escolaridade, houve uma estabilidade notável na forma como os professores ensinaram e ensinam agora? (Cuban,2013).

Será que o problema não está nas formulações das políticas públicas para a Educação? E se trocar o foco da Escola para as reformas que fizeram? Olhem nas mídias quem responde hoje por todas as pesquisas sobre educação do Brasil, quem é porta-voz dos problemas, o que deve ser feito, encomenda pesquisa, diz a solução...Onde estão os docentes? Onde estão os pesquisadores das universidades? Onde está a comunidade escolar? Cadê as suas vozes?

Todas essas considerações não significa dizer que estamos em terra arrasada. Não é isso. Quem passou pelo menos uma década numa sala de aula passou por muitas mudanças: nos livros didáticos, nos conteúdos que foram criminalizados, nos hardwares e softwares que apareceram, nas palavras que apareceram, como inovação, transfromação digital, metodologias ativas, inteligência artificial e abordagens pedagógicas tidas como inovadoras e outras como tradicionais. As mudanças em realidades complexas parecem mais como o vôo de borboletas do que como uma bala de prata em linha reta, como num dos títulos dos livros do Cuban.

Nem a política de importação de tecnologias eletrônicas para as salas de aula ao longo do século passado (por exemplo, filmes, televisão instrutiva, computadores de secretária, quadros interactivos, computadores portáteis) alterou substancialmente as rotinas diárias de professores e alunos. Os promotores que prometem que as soluções de alta tecnologia transformariam magicamente as antigas práticas dirigidas pelos professores em novas e ambiciosas pedagogias centradas no aluno tornaram-se um cliché virtual. No entanto, as evidências de práticas de sala de aula transformadas permanecem escassas em comparação com as evidências acumuladas de que a maioria dos professores domesticaram tecnologias inovadoras, incorporando-as no seu repertório existente de práticas dirigidas pelos professores "(Cuban, 2001).


Vamos pensar na política do laptop 1:1, o que pensam os docentes ?

Os professores fazem perguntas como: Posso aprender a usar esses dispositivos rapidamente ou terei que gastar muito tempo tentando descobrir o que fazer nas minhas aulas diárias? O que acontece se eu precisar de ajuda imediata? Os laptops motivarão meus alunos? Essas novas tecnologias exigem que eu adquira conhecimentos e habilidades que estejam relacionados com o que o estado e o distrito esperam que eu ensine e com o que os alunos precisam? Meus alunos aprenderão melhor e mais do que agora? Os decisores políticos raramente antecipam ou prestam atenção a estas questões críticas e práticas. Estas questões revelam que os professores valorizam ideias e ações que compensam na aprendizagem e nas relações significativas com os alunos. Eles buscam soluções concretas e específicas para os problemas da sala de aula.

Problemas que são específicos de cada docente em sala de aula, da sua rotina e são diversos e diferentes para cada sala de aula

Quem decide a compra desses equipamentos e a sua distribuição tem outras questões em mente:

Quanto custam as inovações para serem colocadas em prática? Quantos professores estão usando os novos materiais ou dispositivos? Os novos programas são eficazes? As notas dos testes dos alunos aumentaram? A mídia divulgou os resultados? O seu mundo é em grande parte político, onde os ciclos eleitorais, os orçamentos, a atenção dos meios de comunicação social e os resultados mensuráveis determinam a longevidade no trabalho e a satisfação pessoal. Incentivos como a reeleição, influenciar outras pessoas e meios de comunicação positivos dominam as rotinas diárias (Cuban, 2013)

As reformas educativas centram-se frequentemente em mudanças estruturais amplas, tais como a introdução de novas tecnologias, mudanças no currículo e mudanças na gestão escolar, mas não resultam em grandes mudanças nas práticas educativas cotidianas. Este fracasso deve-se ao facto de muitas destas reformas não considerarem adequadamente as realidades práticas dos docentes, as suas necessidades e condições de trabalho. Como resultado, apesar das intenções de reforma, os docentes continuam a ensinar da forma que consideram mais eficaz numa determinada situação, muitas vezes apoiando-se em métodos tradicionais, testados e comprovados. A verdadeira reforma no ensino e na aprendizagem exige que as políticas públicas sejam desenvolvidas com uma compreensão profunda e respeitosa das complexidades da prática educativa e das escolas como instituições vivas e dinâmicas. Isto inclui ouvir mais de perto as vozes daqueles que estão nas escolas: educadores e estudantes, que são os verdadeiros agentes de mudança na educação. É importante compreender que a mudança ocorre dentro de cada escola e não existe uma fórmula única que sirva para todos. As diferenças na jurisdição de cada escola, as desigualdades sociais, as necessidades de cada comunidade e a qualidade do ensino e do pessoal docente devem ser consideradas.

Ah, mas o que tem o primeiro carro do senhor Ford a ver com isso? Olha lá, quatro rodas, um motor, dois assentos na frente, assentos atrás...Acho que ele também não mudou muito, não é mesmo?

Esse carro no lançamento só tinha um modelo e uma única cor. Usava um pigmento escuro feito com petróleo e não sabiam como mudar a pigmentação. Voce poderia comprar 100 carros, mas todos iguais no formato e na cor.

Tempos modernos, hoje e ontem.


  1. Koenraad, T., Çelik, S., Higgins, E., & Hillier, J. (2015). Promoting interactive whiteboard use in language and vocational education: A tale of iTILT and SmartVET EU projects. Journal of Interactive Learning Research, 3, 146-154.
  2. Cuban, L. (2013). Por que tantas mudanças estruturais nas escolas e tão pouca reforma na prática docente? Revista de Administração Educacional, 51(2), 109-125.
  3. Cuban, L. (2001). Oversold and underused: Computers in the classroom. Harvard University Press.
  4. Cuban, L. (2013). No end to magical thinking when it comes to high-tech schooling. Larry Cuban on School Reform and Classroom Practice.
  5. Hall, I., & Higgins, S. (2005). Primary school students' perceptions of interactive whiteboards. Journal of Computer Assisted Learning, 21(2), 102-117.

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