Estado de Felicidade e o Estado da Felicidade.
*Artigo maravilhoso e inspirador escrito pelo Amigo Celso Zamoner.
O tema Felicidade é amplamente explorado nas religiões, na multifacetada produção artística e cultural (literatura, música e artes plásticas), adentrando até mesmo nos domínios da Ciência pelos pórticos da Psicologia, Psicanálise, Neurociência e assim por diante. Conforme visto, o Saber Humano é vivamente receptivo para essa entidade psíquica de invulgar e intangível constituição. Todavia, quando se submete a Felicidade à abordagem jurídica, de imediato se suscita uma reação de espanto, a qual se amplia ao se pretender vinculá-la à precípua finalidade do Estado, sua razão mesma de existir. Eis justamente o desafio que é proposto no presente trabalho, não por acaso intitulado “Estado de Felicidade e o Estado da Felicidade”.
Caso se obtivesse uma cápsula do tempo e se empreendesse uma viagem aos primórdios da civilização humana, se constataria de visu que todos os esforços despendidos pelos ancestrais do Homo Sapiens, nada mais objetivaram do que a obtenção da Felicidade, ainda que a mesma se lhes apresentasse ainda sob forma rudimentar, associada aos êxitos alcançados nas atividades de caça ou no rechaço às feras. À medida que evoluíssemos na linha do tempo, se perceberia que, conquanto o processo civilizatório trouxesse a lume inventos e descobertas, sob o ponto de vista psíquico persistiria o mesmo elemento propulsor: a busca incessante da Felicidade.
Por essa razão, não há como dissociar essa aspiração vital que habita o recôndito de cada ser humano albergado no seio da Mãe Terra de toda a complexa construção teórico-científica edificada ao longo dos séculos. Dentre as instituições que resultaram da imersão do ser humano na Cultura, à luz do estruturalismo levistraussiano, se destaca nitidamente o Estado, haja vista a influência diuturna que exerce sobre todos os aspectos da existência humana, desde a concepção fetal, até as conseqüências jurídicas decorrentes da morte.
A questão que se submete ao leitor e que constitui o leitmotiv do presente ensaio resulta justamente do enlace entre o propulsor psíquico representado pela Felicidade e a instituição Estado, com o intuito de determinar se o mesmo institucionalmente jaz comprometido com essa máxima aspiração humana e, caso o esteja, até que ponto o Estado Pós-Moderno se desincumbe satisfatoriamente dessa tarefa.
No que concerne ao primeiro ponto, qual seja, se recai sobre a instituição Estado o dever de direcionar o exercício de suas funções para assegurar aos administrados o gozo de um estado de Felicidade, ousa-se asseverar que tal consiste na finalidade e justificativa mesmas da existência do ente estatal. E não se trata de uma assertiva cujo fundamento axiológico é haurido da dimensão Ético-Filosófica, posto que a vigente ordem constitucional, conquanto não o enuncie expressamente, inoculou em diversos dispositivos esse componente de natureza humanista.
De efeito, no preceito inaugural da Constituição Federal de 1988 o legislador constituinte inscreveu com letras de fogo o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais do Estado brasileiro. Ora, um princípio fundamental equivale ao alicerce de uma edificação, ao elemento estrutural que precede e suporta toda a carga normativo-constitucional. Sendo assim, há que indagar se o referido princípio fundamental representa uma pista que auxilie no desvendamento da questão ora debatida, a saber: incide sobre o Estado a obrigação institucional de prover a Felicidade dos administrados?
Para o desate desse nó, faz-se necessário precedentemente obter-se uma leitura mais precisa do princípio da dignidade da pessoa humana, de sorte a verificar se essa mola propulsora da vida humana representada pela Felicidade compreendida está no seu conceito.
A propósito do tema, afigura-se de bom alvitre, dada a sua visão abrangente, registrar o enfrentamento teórico empreendido pelo eminente constitucionalista Luís Roberto Barroso, vazada nos seguintes termos:
“O princípio da dignidade humana identifica um espaço de integridade a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à criação, independente da crença que se professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito quanto com as condições materiais de subsistência. O desrespeito a esse princípio terá sido um dos estigmas do século que se encerrou e a luta por sua afirmação, um símbolo do novo tempo. Ele representa a superação da intolerância, da discriminação, da exclusão social, da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua liberdade de ser, pensar e criar. O princípio da dignidade da pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios que se pode considerar incorporado ao patrimônio da humanidade, sem prejuízo da persistência de violações cotidianas ao seu conteúdo. Dele se extrai o sentido mais nuclear dos direitos fundamentais, para tutela da liberdade, da igualdade e para a promoção da justiça. No seu âmbito se inclui a proteção do mínimo existencial, locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute dos direitos em geral. Aquém daquele patamar, ainda quando haja sobrevivência, não há dignidade. O elenco de prestações que compõem o mínimo existencial comporta variação conforme a visão subjetiva de quem o elabore, mas parece haver razoável consenso de que inclui, pelo menos: renda mínima, saúde básica e educação fundamental. Há, ainda, um elemento instrumental, que é o acesso à justiça, indispensável para a exigibilidade e efetivação dos direitos”1 .
A passagem doutrinária acima reproduzida traduz com singular propriedade a conjunção de aspectos espirituais e materiais empregados na estruturação do conceito ético-jurídico de dignidade da pessoa humana. Mas seria viável transpô-lo para o campo da Felicidade, haja vista o prevalecente caráter psicológico que a informa? A resposta que vigorosamente emerge é no sentido afirmativo, pelo singelo motivo de que todo e qualquer construto teórico nada mais representa do que uma projeção originária do universo psíquico humano. Sendo assim, não há como escapulir do antropocentrismo que atua como centro de gravidade da cadeia produtiva do conhecimento científico. Por essa razão, quando o legislador transladou da esfera ética para a jurídica o valor universal da dignidade da pessoa humana o fez imbuído do propósito de invitar o Estado e a sociedade a promover ações visando o bem-estar físico e psicológico dos administrados, aspectos os quais, se não correspondem propriamente ao estado psíquico da Felicidade, indubitavelmente a ela conduzem.
Conquanto haja sido conferido no presente trabalho especial relevo ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, não é demasiado salientar que os direitos fundamentais, em última análise, são afluentes que desembocam no estuário da dignidade da pessoa humana. E, ainda, considerando-se que não há como dissociar o humano do seu aparelho psíquico e tampouco se pode olvidar a unidade dialética entre corpo e mente forçosamente se conclui que não apenas os alicerces do edifício constitucional, mas a Constituição na sua integralidade e, por consequência, o Estado que é plasmado à sua imagem e semelhança, incorporaram como linha condutora axiológica a dignificação do Homem, nas vertentes material e espiritual.
Do amálgama de todos esses elementos logra-se concluir que o apanágio da Felicidade reside no equilíbrio da tríplice dimensão corpo-mente-espírito, o qual é obtido quando se proporciona ao ser humano condições de desenvolver plenamente seu potencial, o que implica, necessariamente na intervenção do Estado nas áreas da saúde, educação, cultura, meio ambiente etc. Lança-se na sequência à tarefa de suprimir o segundo ponto de interrogação, para efeito de determinar se o Estado pós–moderno – uma vez erigido precedentemente o pressuposto de que o exercício da função administrativa deve assegurar aos administrados, como ultima ratio, condições para se alcançar uma sensação de bem-estar plena e permanente, suscetível de ser identificada com a própria Felicidade – incorporou, ou não, nas diversas políticas públicas, essa perspectiva focada na singularidade humana do administrado.
A extração da resposta, é lamentável dizer, não demanda maiores elucubrações, haja vista que o cenário político, econômico e social com que se defronta no primeiro decênio deste Século, eloquentemente revela a figura de um Estado esquizofrênico, acossado por pensamentos de crescimento econômico a qualquer custo, alienado de seu papel de provedor da Felicidade coletiva.
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Prova cabal da perturbadora conclusão acima, reside nas discrepâncias entre os dados relativos ao crescimento econômico e ao desenvolvimento humano. Aliás, o nunca suficientemente pranteado economista Celso Furtado2 já alertava à época do cognominado “Milagre Econômico Brasileiro”, que a política econômica deve ser executada pari passu com o desenvolvimento humano. Não constitui temerário atrevimento asseverar que, à luz do ideário constitucional, a atividade econômica é que deve se amoldar às necessidades do ser humano. A realidade, todavia, deixa entrever um quadro diametralmente oposto, na qual interesses econômicos invadem e destroem ecossistemas humanos e biológicos com a força avassaladora de um tsunami.
A justificativa que invariavelmente é utilizada para emoldurar a política econômica do Estado pós-moderno é no sentido de que a geração de riquezas é uma conditio sine qua non para o desenvolvimento humano. Ora, trata-se de um irrefragável sofisma, porquanto a economia de mercado, lançando mão de um mal disfarçado processo de pasteurização cultural, promove a erradicação de patrimônios culturais, históricos e ambientais, ao pior estilo Cavalheiro do Apocalipse.
Trocadilho à parte é bem de ver que a concepção freudiana vertida na sua monumental obra Mal-Estar na Civilização, comporta nesse contexto uma releitura para Mal-Estar da Civilização, porquanto o Estado, em conjunção com os organismos que controlam a economia globalizada, ao revés de promover o bem-estar individual, converteu os administrados em meros consumidores, despojando-os de sua identidade humana, o que implica no recalcamento massivo da dimensão psicológica do perplexo cidadão do Século XXI, configurando, diga-se en passant, insidioso mecanismo que se opera com o auxílio prestimoso da alienação midiática.
Por conseguinte, seja qual for a ideologia política que permeie o Estado, haverá de se constatar que na generalidade das situações o item Felicidade não integra as agendas governamentais, conquanto determinados países se notabilizem no contexto internacional em face da qualidade de vida desfrutada por seus cidadãos.Poder-se-ia redarguir neste quadrante que o Estado, mediante a execução das diversas políticas públicas que se revestem de maior aderência social, indiretamente cria as circunstâncias favoráveis para gerar nos administrados sentimentos compatíveis com o estado de Felicidade.
Por certo que apenas o acometimento de um desvario levaria alguém a negar que tal fenômeno ocorre em maior proporção nos países que se destacam na constelação de nações como detentores dos mais expressivos índices de desenvolvimento humano. Todavia, o que se almeja neste trabalho não é propriamente debater se as políticas públicas resultam no bem-estar coletivo e individual, porém, isto sim, se os programas e as diretrizes traçados na órbita governamental e executados na esfera da Administração Pública deveriam adotar como pressuposto finalístico a própria Felicidade. Destarte, não se trata de inquirir resultados, porém, de inocular nos atos administrativos como finalidade apriorística a propagação generalizada daquele peculiar estado psicológico.
Ora, elaborar e concretizar políticas públicas formatadas sob o signo da Felicidade, por evidente soa um tanto quanto utópico, despido de senso prático e, ainda, totalmente divorciado da realidade. Certamente essas são algumas ideias que podem aflorar quando cotejamos o inatingível plano do dever ser com o árido território do ser. Concorda-se incondicionalmente que sempre existirá uma tensão entre o ideal de realidade e o panorama brutal que assola nossos sentidos cotidianamente. Todavia, não se menospreze a ingente capacidade humana de buscar novos paradigmas, inclusive os relativos às linhas condutoras das políticas públicas. Nesse sentido é com indisfarçável regozijo que se assinala que há uma nota dissonante no concerto das nações, em que pese as vibrações soarem de muito longínquo.
Nos contrafortes do Himalaia, entrincheirado entre a Índia, o Nepal, a China e o Tibete, se localiza um país singular, provavelmente o último reduto do Planeta que logrou resistir às investidas tentaculares da globalização. Desde logo se averbe que não importará em demérito do leitor caso constate seu completo alheamento acerca do Reino do Butão. O Butão é uma Monarquia Constitucional, cujo Rei Jigme Singye Wangchuck, em 1972, erigiu o conceito de Felicidade Interna Bruta (FIB), em contraposição ao popular indicador econômico Produto Interno Bruto (PIB). Esse conceito revolucionário de desenvolvimento baseia-se no princípio de que o crescimento econômico deve se operar simultaneamente com o desenvolvimento espiritual, de sorte a constituir-se uma autêntica relação simbiótica entre as riquezas materiais e os tesouros do espírito.
O FIB se assenta em quatro pilares, a saber: (1) promoção de um desenvolvimento sócio-econômico sustentável e igualitário, (2) a preservação e promoção dos valores culturais, (3) a conservação do meio ambiente e o (4) estabelecimento de uma boa governança. Dessas vertentes, por sua feita, derivam nove indicadores de aferição da Felicidade de uma nação: 1) bem-estar psicológico; 2) meio ambiente; 3) saúde; 4) educação; 5) cultura; 6) padrão de vida; 7) uso do tempo; 8) vitalidade comunitária e 9) boa governança.
É oportuno registrar que o governo do Butão submete qualquer questão que possa afetar a Felicidade do Povo ao crivo dos quatro pilares e seus nove derivados. Constitui exemplo emblemático de aplicação desse conceito o fato de que o Butão aprovou em 2004 uma lei proibindo a venda de qualquer produto oriundo do tabaco, vez que considerou que o montante arrecadado a título de impostos não justificava o comprometimento da saúde e do bem-estar psíquico de seus cidadãos, além dos danosos reflexos ambientais.
O desenvolvimento do Butão, sob o ponto de vista do seu PIB, por certo não lhe confere honrosa posição entre os países cêntricos. Contudo, seus habitantes mantêm intacto o patrimônio cultural, artístico e histórico legado por seus ancestrais, suas florestas jazem incólumes, desconhecem a violência urbana, a prostituição e o consumo de drogas, enfim, não foram afetados por políticas públicas invasivas e dizimadoras de sua identidade humana. Diante desse cenário se impõe uma única conclusão: o Butão é um país rico, talvez o mais afortunado desta maltratada morada planetária.
No desfecho desta trajetória, sob a inspiração do excêntrico Butão, faz-se imperioso enunciar que o “estado de felicidade” dos administrados deve ser incorporado pelo Estado Pós-Moderno como a pedra fundamental de sua estrutura, convertendo-se em um ente que mereceria ser cognominado “Estado da Felicidade”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo – Os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. FURTADO, Celso. O Mito do Desenvolvimento Econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
Foto: imagem do Mosteiro Taktsang, que fica na cidade de Paro, no Butão e é considerado um dos símbolos do país. O lugar é um dos pontos turísticos mais altos em localidade do mundo.