Eu sei lutar, mas preciso aprender a descansar.
"Às vezes você só tem que descansar. O mundo pode esperar." Foto: Pinterest

Eu sei lutar, mas preciso aprender a descansar.

Um tempo atrás, eu estava olhando o feed de uma rede social minha, e me deparei com o conteúdo de uma psicóloga, naquelas recomendações que a própria plataforma dá. O que estava escrito ali me atingiu em cheio:

Print de um post do Twitter. Ele possui fundo preto e letras brancas, e diz: "Você sabe como lutar. Agora aprenda a descansar."​ (em tradução livre de "You know how to fight. Now learn to rest."​)
Tweet de @drthema: "Você sabe como lutar. Agora aprenda a descansar."

Eu lembro de ler aquilo e de respirar fundo. De ler e reler inúmeras vezes e de sentir um “algo a mais” a cada vez que eu lia, a vontade de chorar relacionada a alguém que me entendeu sem nem me conhecer. E eu tanto pensei no significado dessas duas frases que eu estou aqui, às 1h25 da manhã de uma quinta-feira, pleno final de ano, escrevendo sobre o impacto que essa frase teve há pouco mais de um mês e o quanto ela vai seguir tendo impacto.

De todos os principais verbos da minha vida, “lutar” foi um dos primeiros que eu precisei aprender. Eu não falo aqui apenas sobre lutar contra a escassez ou contra a extrema pobreza porque eu tive algumas oportunidades que muitas pessoas iguais a mim não tiveram. Entre elas, estudar em escolas particulares, às vezes bilingues, e com ótimos métodos de ensino.

Mas houve momentos de grandes lutas na minha vida, contra a escassez e contra a fome: quando a minha mãe trabalhou de faz-tudo em uma gráfica e foi verbalmente assediada pelo patrão inúmeras vezes; quando meu pai ficou desempregado e tivemos que comer salsicha no café, almoço e jantar por um bom tempo e todas as vezes em que minha mãe precisou fazer bicos como doméstica e “governanta” para colocar comida na mesa e fazer as contas fecharem a cada mês — eu precisei entender o significado de sacrifício e escassez desde pouco antes dos 10 anos. Eu tive que entender que nem sempre meus pais tinham dinheiro para me dar para o lanche, para comprar uma revista Capricho, para ir às excursões das escolas particulares nas quais eu estudei porque existiam grandes sacrifícios a serem feitos e o supérfluo tinha seu momento certo, quando tinha um momento.

E quanto mais eu crescia, mais eu percebia que as lutas e sacrifícios dos meus pais eram meus também.

Crianças que precisaram crescer rápido são os adultos que lutam em demasia hoje, e essa luta aumenta quando os recortes racial e de gênero entram em questão (e são necessários entrar). Eu não posso medir a vida de outras pessoas com a régua do que foi e do que é a minha realidade — esse ato (que eu vejo acontecendo até com uma certa frequência) é de uma falta de empatia que posso considerar cruel.

O ponto é: muitas vezes, as lutas dos nossos pais se tornam nossas. As batalhas deles se tornam nossas. A batalha por uma melhor condição de vida é hoje a minha principal batalha, porque uma das maiores eu já venci: ter uma formação superior completa. Eu venho de um cenário onde eu vi meu pai tentar uma formação superior para oferecer melhores condições de vida para nossa família: quando ele estava desempregado, em 2006 ou 2007, eu o vi tentar o Direito. Anos depois, na minha adolescência, eu o vi tentar Comércio Exterior à distância, nenhuma das formações completas, mas as tentativas estavam ali, de uma formação superior para oferecer uma vida melhor para a família e para si. Apostilas de concurso público também eram parte dos principais livros aqui em casa — junto com elas, a luta constante pela estabilidade financeira e não só por um presente melhor, mas para um futuro garantido, também.

Uns 2 ou 3 anos atrás, eu consegui encontrar o início do que parecia ser alguma estabilidade, mas eu nunca precisei lutar tanto quanto nesses últimos anos — como ironia do destino, eu fui de dependente à provedora em um estalar de dedos. Foi muito trabalho, muita luta e muita fé em mim e em Orixá para que eu seguisse com saúde o suficiente para prover a mim e aos meus, e assim, de certa forma, segue sendo. Às vezes sinto que todos os momentos de luta da minha vida me trouxeram para o momento no qual eu estivesse nas trincheiras: aqui e agora.

“Para que amanhã não seja só um ontem, com um novo nome” e para que eu possa “deixar sem chão quem riu de nóis sem teto”, como bem rimou Emicida em “AmarElo”, eu precisei e preciso lutar.

Mas, aqui entre nós e sinceramente: eu estou ficando cansada de só saber lutar. Eu estou cansada de só saber lutar porque é só isso que eu tenho visto de mim e que venho fazendo. Foi em 2022 que, com 5 anos de carreira, que eu me permiti ao “luxo” de tirar férias pela primeira vez. O descanso me pareceu estranho, porque eu nunca tive descanso — a não ser que eu tivesse tirado um ano sabático, todos os desempregos pelos quais eu passei não contam como ‘descanso’ — como bem cantou Dona Ivone Lara: “negro sem emprego, fica sem sossego.”

A Dra. Thema Bryant, uma mulher negra retinta, com seus cabelos escuros em dreadlocks entre o queixo e os ombros. Ela veste uma camiseta preta e o que parece ser um colete da cor vermelha sobrepõe a peça. Ela exibe um sorriso largo e leve. A foto foi tirada em um fundo composto por colunas cor creme.
Foto: Dra. Thema Bryant, psicóloga estadunidense especialista em trauma, presidente eleita da Associação Americana de Psicologia, professora e diretora do Departamento de Pesquisa em Cultura e Trauma da Universidade Pepperdine

Por isso que a frase dita pela Dra. Thema Bryant me fez e me faz pensar tanto. Ela apresentou um TedTalk incrível sobre a cura de traumas intergeracionais, que casa com a frase do começo deste texto, e entre as muitas coisas que ela fala, me chama a atenção quando ela diz: “eu sei que vocês nos viram trabalhando, eu sei que vocês nos viram liderando, mas honestamente tem algo mais delicioso e sagrado do que uma mulher negra descansando?”.

Eu estou muito acostumada a me ver lutando, meu corpo está calejado, minha mente vive em constante alerta porque minhas lutas e sacrifícios são constantes. Cicatrizes de batalha já foram talhadas, retalhadas, abertas, cicatrizadas e esse é um grande ciclo vicioso e intergeracional que estou trabalhando para quebrar: são poucas as vezes que eu lembro de ver minha avó e minha mãe descansando, são raras as vezes que vi meu pai, de fato, descansando. E eu não falo de ficar o dia inteiro em casa maratonando série, indo pro samba cerca de três vezes ao ano ou de fazer aquela viagem de dois dias para a praia: eu falo de descansar se descolando dos sacrifícios, sem culpa, sem medo — e é desafiadora a ausência do medo e da culpa na iminente onda de dívidas e contas a pagar.

Antes de ter filhos, sobrinhos e afilhados que me vejam descansar, eu quero que meus pais, minhas tias, meus primos, amigos e que, sobretudo, eu mesma me vejam descansar: eu quero me acostumar com o descanso pelo descanso. Eu quero o descanso sem peso na consciência, sem achar que eu preciso me matar de trabalhar para ser merecedora do que parece ser uma honraria de difícil acesso.

Para este ano que se inicia e para todos os outros que virão, é este meu principal desejo: aprender a descansar, desconectando a ideia de merecimento da quantidade de trabalho que eu desempenhei porque assim como eu sou ótima em lutar, quero ser ótima em descansar.

Carlos Galazzi 🏳️🌈

Creative Art Director at GALERIA.AG | Designer | Content

2 a

Aff ❤️❤️❤️❤️❤️

Marina Doitschinoff

Content Strategy | Content Manager | Social Media | Digital Marketing

2 a

que esse descanso seja inteiro e leve, sem cobranças ❤

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