Linguagem (in)consciente
(Foto: Pixabay / Gerd Altmann).

Linguagem (in)consciente

A experiência no “Diário de um desocupado” me revelou que a língua portuguesa costuma ser taxada de complicada. Entrando nessa reflexão, é possível perceber que cada vez mais a oralidade, as expressões artísticas e a comunicação escrita estão se simplificando. Basta comparar esses elementos de hoje com o de algum ponto no passado. Faça o teste, por exemplo, assistindo um noticiário de hoje e um de 30 anos atrás, disponível no youtube. Compare os discursos dos políticos hoje com os de 30 anos atrás – e nem é preciso que seja do Dr. Ulysses ou do Brizola. Não que a facilitação da comunicação em si seja um problema, ou que devemos voltar a usar o ‘vós’ no cotidiano. Porém, atenção precisa ser tomada para não perdermos na comunicação importantes determinações que um vocabulário mais amplo pode permitir.

Há também quem diga que o português não é complicado, mas sim complexo. A ‘complicação’ estaria no entendimento das pessoas. Se a cada geração o processo educacional vai gerando menos formação e vocabulário, podemos ter uma fonte para esse efeito. Por outro lado, hoje em dia com cada vez mais pessoas nativas do português falando rotineiramente o inglês, mais comentários vão surgindo em relação à maior simplicidade dessa língua do que daquela. Se no português parece que há muitas palavras para designar um mesmo elemento, no inglês uma mesma palavra é aplicada a diferentes objetos ou ações. Sem contar as flexões verbais, e outras variações.

O pior é que a linguagem é como uma musculatura. Se vamos sistematicamente deixando de exercitar, vai atrofiando. É possível pegar vários exemplos do cotidiano para ilustrar. A começar pelo volume de siglas que usamos todos os dias: CNH, CEP, ABNT, CBF, PDCA, e por aí vai. Se formos para as abreviações no zap, aí o bicho pega: Blz, Tmjt, Pdc, Gnt, Hj, Plmdds, Sdds. O Aurélio que se revire no túmulo se não concordar que isso é língua portuguesa.

E nossa falta de vontade em falar o que é preciso por completo? Por exemplo, os próprios nomes. Para os paulistas então, nem se fala. Eu mesmo sou mais Dan que Daniel. Pode ser efeito da familiaridade, tudo bem. Mas, que é mais simplista, isso é. Podendo gastar menos energia, lá estamos nós. Esses dias, eu comentei com minha esposa após um (pequeno) desacordo: “O Nelson tem uma frase para isso”. E ela respondeu: “Nelson? Que Nelson?”. E eu: “O Nelson, ué. Nelson Rodrigues”. A frase é melhor que não seja citada aqui, os tempos mudaram.

Outro caso semelhante ocorreu no mês passado. Estávamos a esposa e eu no Salgado Filho, em Porto Alegre. Avistei, por acaso, o Ney Matogrosso. Comentei com ela: “Olha só, o Ney está ali”. Ela colocou os óculos calmamente, olhou em volta, apurou os olhos, e comunicou quase solene: “Você deve estar enganado, não estou vendo o tio Nei”. “Não é o tio Nei, é o Ney, está ali ó”. “Mas o professor Nei é mais gordo, e não está tão velho”. “Não é o professor Nei; é o Ney. Não está vendo o Ney Matogrosso?”. Curiosidade das convivências. O Nelson e o Ney são mais próximos a mim, trato-os de acordo com a proximidade. Ocorre apenas que eu não sou próximo a eles, mas tudo bem. Ao Ney até tive a oportunidade de me apresentar, isso lá no Salgado Filho. Não o fui, apesar da insistência da esposa: “Você o trata por Ney; vai tirar uma foto”. “É um senhor ocupado. Parece até ser discreto; os tempos de ‘Secos e Molhados’ já passaram. Deve estar farto de fotos e autógrafos, não vou”. Já com o Nelson, que morreu em 1980, esse nem que eu quisesse não conseguiria conhecer pessoalmente. São casos de pura comunicação e suas dificuldades e problemas, frequentemente presentes.

Outra consequência negativa dessa simplificação sistemática da linguagem poderia ser abordada no nível da consciência. Os psicólogos costumam defender que a consciência está na linguagem. Se for assim, a cada redução no nível da linguagem há uma diminuição no nível de consciência do indivíduo. Se extrapolado para a visão da sociedade em geral, ou de geração pra geração, possivelmente estamos a cada época perdendo em consciência coletiva. Que loucura, não?

Em documentos e publicações científicas o problema é menor. Há esforço para que a literatura científica seja precisa e recheada de determinações. Mas ainda no ambiente acadêmico há sistematicamente um cuidado em poder ser entendido ou não parecer que se escreve para “fazer bonito”. Fora da academia, escrever de forma a ser compreendido é mais que uma necessidade, tornou-se uma condição. Fui me aventurar esses dias em um treinamento de “escrita de artigos” pelo LinkedIn. A recomendação é que integralmente o foco deve estar no leitor, e o estilo próprio do autor que fique de lado. Para onde então vai a estética ou as características próprias de quem se propõe a escrever? Certamente o Saramago ou o Guimarães Rosa não passariam pelo checklist das boas práticas de escrita do curso do LinkedIn. Talvez estivesse certo o Antônio Cândido, que já nos anos 2000 falava que só lia literatura produzida até no máximo os anos 1960.

Que fazer então? Outra das boas práticas difundidas sobre os “bons artigos” é que apresentem conclusões claras. Até o seu direito de pensar por si próprio querem retirar de você, querido leitor. Eu serei fiel à crônica, ao texto artístico. Não esperem de mim resposta para o que fazer, mas a provocação da reflexão. Até logo.

Diego Carvalho

--Técnico de processos| Engenharia Elétrica | Técnico Eletroeletrônica.

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