Milhões de brasileiros vivem sem um copo de água limpa para beber. Conheça os jovens que lutam todo dia para mudar essa realidade
por Juliana Afonso
Cerca de 35 milhões de brasileiros vivem sem ter um copo de água limpa para beber, segundo o Instituto Trata Brasil.
Mudar essa realidade é o sonho de um trio de jovens, todos de 27 anos. Rodrigo Belli, Daniel Ilg e João Piedrafita são os sócios-fundadores da Água Camelo, uma startup de impacto socioambiental que busca ampliar o acesso a fontes seguras de água potável.
A ideia surgiu em 2018, durante uma disciplina do curso de Design de Produto, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Rodrigo e outros colegas foram desafiados a criar um negócio de impacto. Ao estudar o processo de urbanização da capital carioca, percebeu que a questão da água era calamitante. João explica:
“Para conseguir pegar um copo de água limpa, as pessoas passam por quatro etapas: captação, muitas vezes fora das suas casas; transporte, geralmente realizado em baldes; armazenamento, em caixas d’água abertas ou garrafas pet; e filtragem, realizada de formas muito rústicas, o que não garante uma fonte segura”
Foi pensando nisso que Rodrigo começou a desenvolver o Kit Camelo, uma mochila com um filtro de água portátil para facilitar a realização destas etapas. A proposta virou um negócio de sucesso que já alcança 19 estados e mais de 200 comunidades, impactando diretamente a vida de mais de 100 mil pessoas.
O PRIMEIRO PRODUTO FOI VENDIDO DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19
A jornada para transformar a ideia em empresa durou cerca de dois anos. Após concluir a disciplina, Rodrigo decidiu investir no desenvolvimento do produto, que contou com o suporte da universidade e de programas externos como o Shell Iniciativa Jovem, para o qual foi selecionado em 2019.
O teste de viabilidade com um MVP aconteceu apenas no final daquele ano, quando a equipe da ONG Corrente Pelo Bem o chamou para implementar o Kit Camelo na comunidade do Jardim Gramacho, no município de Duque de Caxias (RJ). Rodrigo acompanhou de perto os efeitos do produto durante dois meses, até o início da pandemia da Covid-19, quando o monitoramento foi interrompido.
O projeto começava a desacelerar, até que uma nota no jornal O Globo deu visibilidade à iniciativa e Rodrigo recebeu uma ligação de uma pessoa interessada em comprar um kit para ajudar alguém. “Num período de duas semanas, ele já tinha vendido cerca de 60 kits”, conta João.
Motivado pelas vendas – e percebendo que o produto poderia mesmo virar negócio –, Rodrigo chamou os amigos e colegas de curso João e Daniel para fundarem a empresa, em agosto de 2020.
A RELAÇÃO COM AS COMUNIDADES É PRIORIDADE DESDE A FUNDAÇÃO
“Eu tinha acabado de passar em um estágio que eu estava pleiteando há muito tempo, em uma agência da ONU, mas quando o Rodrigo me chamou eu entendi que era isso. Saí do estágio e entrei na Água Camelo para ser responsável pela relação com as comunidades”, relembra João.
Filho do antropólogo Marcelo Piedrafita e da economista Bia Saldanha, João nasceu no Acre e conviveu desde cedo com a realidade da floresta. “Eu tinha semanas quando estive pela primeira vez em um território indígena”, conta. O local em questão era a aldeia Mutum, na terra indígena Yawanawá (AC).
“Uma das coisas que eu presenciei desde pequeno foi essa questão da água. Por mais que a Amazônia tenha a maior reserva de água doce do planeta, são poucas as fontes de acesso à água potável e as pessoas enfrentam muitos problemas de saúde relacionados a essa questão”
João passou a infância e a adolescência entre sua terra natal e o Rio de Janeiro, até se mudar de vez para a capital carioca aos 17 anos. Ele diz que sempre acreditou que o diálogo – com comunidades indígenas, quilombolas, rurais ou urbanas – seria o maior aliado da empresa para estabelecer entendimento mútuo e fomentar a colaboração necessária para promover mudanças positivas.
“Claro que a gente se aprofunda sobre a realidade de um lugar, mas nunca tivemos a prepotência de entender mais sobre os territórios do que as próprias pessoas que vivem ali”, afirma.
UMA TRANSFORMAÇÃO DE MODELO DE NEGÓCIOS PARA B2C FEZ A EMPRESA CRESCER
Logo após a criação da empresa, a Água Camelo já estava em seis estados. Afinal, fornecer água limpa para as comunidades em meio a maior crise sanitária do século estava na ordem do dia. No entanto, os sócios sabiam que para encarar o problema de acesso à água no Brasil era preciso vender o produto para grandes empresas.
Em setembro de 2021, a Água Camelo foi uma das 20 startups selecionadas na Aceleradora 100+, um dos maiores processos de aceleração da América Latina, comandado pela Ambev. “A gente era infinitamente menor que todas as startups que estavam ali, nunca tínhamos recebido nenhuma rodada de investimento, mas sabíamos que era nossa chance”, conta João.
Durante os seis meses do processo de aceleração, eles redesenharam a estrutura da Água Camelo e transformaram o modelo de negócios de B2C para B2B. O objetivo era que a empresa passasse a vender não apenas um produto, mas um serviço. Para isso, foi desenvolvida uma metodologia em cinco etapas.
A primeira é um estudo preliminar sobre cada comunidade para entender como o projeto será realizado a partir da realidade local. Em seguida é a parte educacional, onde são realizadas oficinas de WASH (water, sanitation, and hygiene, ou água, saneamento e higiene). O terceiro momento é de implementação e instalação da tecnologia. A próxima etapa é o monitoramento dos impactos do serviço. Por fim, acontece a entrega dos resultados e dos dados por meio de relatórios e conteúdos audiovisuais, uma forma de gerar retorno e reputação para a Água Camelo e também para as empresas parceiras.
Com o modelo de negócio redesenhado, eles realizaram a implementação de um piloto no Morro da Providência, no Rio de Janeiro, e na aldeia Mutum, no Acre – a mesma que João havia visitado quando era apenas um bebê de algumas semanas.
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“Tivemos resultados incríveis durante o piloto. Quando a gente chegou, 86% das famílias no Morro da Previdência e 96% das famílias na aldeia indígena do Acre apresentavam doenças de veiculação hídrica; depois de três meses, 100% das famílias não apresentavam mais doenças. Vimos que o nosso serviço tinha muita capacidade de transformar a vida dessas comunidades”
Ao final da aceleração, a startup já tinha fechado uma parceria com a Ambev. “Foi um divisor de águas”, comenta João, sorrindo.
Entre os atuais clientes, além da fabricante de bebidas estão empresas como Coca-Cola, Nestlé, Unicef e Amazon. Essas empresas recorrem à Água Camelo para alinhar as iniciativas de impacto que patrocinam às suas metas de ESG.
TECNOLOGIA PARA FILTRAR 99,9% DAS PARTÍCULAS PRESENTES NA ÁGUA
A solução da Água Camelo inclui um sistema de nanotecnologias de filtragem, na qual membranas de ultrafiltração excluem partículas por tamanho.
“Estamos falando de uma filtragem de 99,9% de todas as bactérias, protozoários e partículas em suspensão, que são os grandes causadores de doenças de veiculação hídrica”, explica João.
Segundo ele, esse percentual é equivalente ou superior à eficácia de filtros de barro e de purificadores de água residenciais — e com diferenças importantes de escala e propósito, considerando que os sistemas da Água Camelo foram projetados para atender comunidades vulneráveis em áreas de difícil acesso:
“A Central Camelo, por exemplo, oferece uma capacidade de filtragem que vai de 1 mil a 20 mil litros por hora, uma vantagem significativa em termos de escala e aplicação”
O sistema de filtragem veio do exterior e foi escolhido após muita pesquisa, já que além de ser eficaz no tratamento da água era preciso encontrar uma tecnologia capaz de gerar autonomia para os usuários.
“A gente precisava de um sistema que não tivesse que ter troca de peça por um longo período de tempo”, diz João. No modelo atual, as primeiras peças são trocadas após cinco anos de uso, aproximadamente.
Hoje, a Água Camelo oferece três tecnologias: a mochila, que tem capacidade de 15 litros; a central, uma espécie de torneira para atender pontos comunitários; e o totem, um equipamento com dispositivo de tela projetado especialmente para favelas. Em todas elas é usada a mesma técnica de filtragem, com a diferença de que as centrais também filtram vírus.
A startup trabalha em três verticais. Uma delas é a de projetos personalizados, desenvolvidos em colaboração com o cliente. Um exemplo é o trabalho realizado com a Nestlé e cadeia produtiva do cacau.
“A Nestlé quer que todas as suas fazendas estejam dentro de certos parâmetros para obter o certificado de cacau de origem sustentável, um deles é o acesso à água potável”
Outra vertical é a de projetos mapeados, no qual a equipe mapeia comunidades com dificuldade de acesso à água e apresenta para os clientes. Por último, há a vertical de atuação emergencial, voltada para o suporte em cenários críticos.
A Água Camelo já atuou durante a crise humanitária dos povos Yanomami, os apagões que afetaram o Amapá e as inundações no Rio Grande do Sul. “Acreditamos muito no nosso poder de chegar rápido e de forma organizada, com produtos que fazem a diferença nesse tipo de situação”, afirma João.
O OBJETIVO É SER A MAIOR A EMPRESA DE ACESSO À ÁGUA POTÁVEL DO BRASIL
Nesses quatro anos de atividade, a Água Camelo coleciona reconhecimentos. Além da aceleração da Ambev, eles participaram de processos de inovação como o Braskem Labs e o Yunus Negócios Sociais. No ano passado, foram convidados a apresentar suas ações na Conferência Mundial da Água, realizada pela ONU, em Nova York. Neste ano, eles levaram o 1º lugar no Youth Program Video Competition no Fórum Mundial da Água, em Bali, na Indonésia.
Até hoje, já foram disponibilizados mais de 3 mil Kits Camelos (as mochilas) e mais de 300 centrais. A empresa não divulga onde os equipamentos são fabricados. Sua equipe se compõe de 17 pessoas, além de agentes locais contratados em cada comunidade para realizar o monitoramento da tecnologia por um determinado período. Os sócios dividem os cargos executivos: Rodrigo é o diretor executivo, Daniel, o diretor de operações.
João, por sua vez, atua como o diretor comercial. Ele credita o sucesso ao fato de a empresa oferecer uma solução completa: em vez de apenas vender o produto, a Água Camelo realiza um diagnóstico sobre os locais, implementação, monitoramento e entrega resultados em relatório, dados e vídeo.
Outro diferencial, segundo João, é a perenidade dos projetos.
“A gente cria conexões dentro das comunidades, o que mantém as portas abertas. Com isso, construímos uma grande rede de empresas, instituições e lideranças locais”
Hoje, segundo o sócio, a empresa tem acesso a todos os estados da Amazônia Legal e a milhares de favelas do Brasil. Nos últimos dois anos, a Água Camelo vem triplicando o seu faturamento, resultado que deve se repetir em 2024.
Os sócios almejam ser a maior a empresa de acesso à água potável do Brasil, o que não significa resolver o problema sozinhos. Entre os planos para o futuro está se aproximar do poder público para construir soluções em escala nacional.
“A gente precisa de muitos players trabalhando e trocando experiências”, diz João. “Esse é um problema que precisa ser enfrentado a muitas mãos.”