O aparecimento do Divino na mitologia Guarani

O aparecimento do Divino na mitologia Guarani

Nosso Pai, o último, Nosso Pai, o primeiro,

fez com que seu próprio corpo surgisse

da noite originária.

As celestes plantas dos pés,

o breve arco do assento

no coração da noite originária

ele os desdobra, desdobrando-se.

"Tupã Tenondé apresenta-se como colibri, a grande expressão do sagrado para o povo Guarani, pois é uma das suas primeiras formas de manifestação – o que vê a totalidade a partir dos mundos sutis do espírito. Ainda hoje é sob essa forma ágil que se apresenta um mensageiro divino – aquele que vem da morada de Tupã – quando quer transmitir uma orientação espiritual importante, ou um sinal de proteção, de presença, de indício de caminho correto" (Kaka Werá Jecupé. Tupã Tenondé: A criação do Universo, da Terra e do Homem segundo a tradição oral Guarani. São Paulo: Peirópolis, 2001, pg 35.).

Para Joseph CampbelI, a primeira função da mitologia é de reconciliar o homem com a vida: não a mera reconciliação entre a consciência e as precondições da sua própria existência, mas a reconciliação com a gratidão, o amor, o reconhecimento da delicadeza. Pela amargura e pela dor, a experiência primordial no âmago da vida é doce, maravilhosa. Portanto, primeira função de uma ordem mitológica tem sido reconciliar a consciência com o fato de que a vida é difícil, e que muitas vezes a sobrevivência depende da morte de algo que sirva como alimento. As primeiras ordens mitológicas, primitivas, são afirmativas, acolhem a vida como ela é.

Para os Guaranis, a vida era o que receberam do Deus primevo e de toda Sua criação. Nesse sentido seus textos sagrados representam a celebração da vida recebida de Ñamandu e de como o mundo foi criado para que o homem vivesse sua vida em toda sua plenitude.

O primeiro desses textos, “os primitivos ritos do Colibri” (“Maino i reko ypykue”), revela o momento da criação, quando tudo era o caos e só havia o pio da coruja sarapintada.O colibri, “em adejos sobre a fronte do deus, farta de flores, respinga água em sua boca e o alimenta com frutos do paraíso”.

Maino é o termo mbyá-guarani para designar o colibri, presença constante em várias mitologias ameríndias. Ele surge no meio do caos inicial para alimentar com seu nectar, que colhe através das flores com seu beijo, o novo deus que se desdobra.

A noite originária esta associada ao hemisfério sul, de onde partem os ventos originários. Os povos antigos de nosso hemisfério observavam que o movimento aparente do sol no horizonte o levava do ponto máximo norte (Equinócios) até o meio do céu (Solstícios). Quando chegava ao meio do céu, fazia o caminho de volta. Portanto, o sul nunca era iluminado com a presença solar, sendo associado ao caos e as sombras. No hemisfério norte é o contrário, sendo o norte associado as trevas. Por isso todo ritual de exorcismo é realizado voltado para o norte neste hemisfério.

É da parte mais obscura do ser, aquela que não pode ser conhecida ou penetrada, nunca iluminada pela luz da razão, o ID, que o deus se revela, trazendo uma nova consciência de si mesmo, o desabrochar do Ego. O homem passa a se tornar ereto, pois é isso o que o diferencia dos animais e o aproxima da divindade.

Toda espiritualidade guarani esta baseada no "vir-a-ser", direito divino que ele adquire por seu nhandereko, ou seu jeito de ser. Ele é o guardião do divino, ele é a imagem do divino, e como tal tem de viver até adquirir o Si-mesmo ou kandire, sendo que é necessário haver anteriormente obtido o Aguyje - a perfeição, a completude. Ser aguyje significa ter aniquilado dentro de si a natureza má, o teko achy kue, ter-se livrado portanto de toda a imperfeição ligada ao sangue e à carne; em suma, é ter apenas uma palavra, a alma de essência divina que circula no esqueleto e o mantém ereto: então é possível o kandire, pode-se então empreender a viagem para o Oriente e atravessar — de pé — o mar

Dos ventos primitivos surge Ñamandu, e com este chega o novo tempo: tempo dos longos sóis, dos ventos mornos e quentes da primavera e do verão, tempos felizes que anunciam a volta do não-mortal, a volta do divino. Antes de Ñamandu existe o vento originário: vento gelado do sul, vento da dobra e não do desdobramento. Ñamandu, o divino, Ñamandu, o vivo, afasta o vento originário, que é o sopro da morte. O novo tempo, calor e luz do meio-dia imóvel, é o tempo da eternidade, onde só as coisas não-mortais encontram estada.

O novo homem, a nova consciência surgida desde os tempos que o homo sapiens saiu da África em direção aos outros continentes e a América, se manifesta em toda sua intensidade como algo novo. Já é um aparelho psíquico completo e bem definido, capaz de criar mitos que expressam sua complexidade, é um sol em si mesmo em meios as trevas do inconsciente.

No cimo da cabeça divina

as flores, as plumas que o coroam,

são gotas de orvalho.

Entre as flores, entre as plumas da coroa divina,

o pássaro originário, Maino, o colibri,

esvoaça, adeja.

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