O cofre vermelho
A história não-verídica de como um patrão burlou a lei trabalhista para poder presentear livremente seus funcionários, sem que isto fosse automaticamente incorporado aos seus salários.
- "Mês terrível; mas a equipe surpreendeu."
Daniel estava satisfeito com o árduo empenho de dois membros de sua equipe. Apesar dos tempos difíceis e a crise apertando, fecharam o mês no azul. Fizeram um esforço notável frente ao cenário pessimista. Qualquer empresário apenas consciente, sem precisar ser um humanista, saberia que tinha de recompensá-los.
Daniel começou seu negócio do zero. Na verdade no negativo em menos três mil dólares. 3.432 dólares que ficara devendo ao fechar o negócio de papel reciclado. O mercado não estava preparado.
De patrão, virou funcionário novamente por cerca de 4 anos. Para Daniel não havia nenhum demérito em ser funcionário. Quase sempre se pegava cantarolando no trabalho. Gostava de ser colega de trabalho, sem posição superior - mesmo em cargos de supervisão - em que rapidamente era designado - nunca perdia (ou pelo menos nunca pensava que perdia) o relacionamento de igual para igual com seus amigos do serviço.
Antes de abrir o primeiro e falido negócio, amargou empregos desvalorizados nos Estados Unidos, para pagar os estudos. Ficou surpreso que, mesmo estes empregos lhe garantiam o aluguel e sustento dignos. Garçom, frentista, porteiro... Cada experiência nova em Miami tinha esta surpresa comum:- estes empregos usualmente rejeitados pelos americanos, pagavam o suficiente.
Apenas um degrau acima, como caminhoneiro, chegou a ganhar 50 centavos por milha, numa transportadora. Com pouco esforço (visto que entendia estar conhecendo os Estados Unidos de graça) fazia 20 mil milhas por mês:- 10 mil dólares. Pensou que este sempre seria então, seu plano 'B':- se nada desse certo no Brasil, voltaria a ser caminhoneiro na América.
Agora - mesmo diante da crise brasileira geral, reflexo da mundial - seu pequeno negócio, uma consultoria para agricultura, começava a dar fruto. Ele chamava de 'consertadora de fazendas'. Ele queria quebrar dois paradigmas. 01) Há que se esforçar para tornar sítios e pequenas fazendas rentáveis e prósperas para seus donos, com as melhores práticas possíveis, para tornar o alimento mais barato e reter o homem na terra. 02) Empregados deveriam poder orgulhar-se de estarem na fazenda e se satisfazer com seus salários.
Até ali, mesmo ele tendo sido funcionário, nada indicava que ser empregado no Brasil era bom negócio. Ser empregado com os pisos salariais brasileiros, para Daniel, beirava a burrice e insanidade. Como alguém pode viver no Brasil com o salário mínimo? (300 dólares! Metade do salário da Costa Rica). Ainda que fossem o dobro disto os salários de muitos gerentes, supervisores, chefes de setor e gente em cargos de 'confiança', como fazer? Esta segunda categoria ainda tinha um problema muito maior:- sustentar a família. Enquanto uma grande parte de jovens e descompromissados trabalhadores criam que valia a pena trabalhar pelas três notas de 100 dólares, numa ilusão de emprego (um roubo de vida e tempo sem recompensa para o funcionário) que mascarava o custo, com o morar na casa dos pais e comer a comida da mãe, os em cargos 'superiores' já amargavam uma 'carreira' em empresas por décadas, por uma ninharia entre 2 e 4 mil reais por mês. No Brasil, com este dinheiro, você tinha que escolher entre moradia ou saúde. Lazer ou educação, aluguel ou carro. Comprometendo valiosíssimas 44 horas semanais por um maldito emprego que nem estável era.
Dinheiro contado. Contado e insuficiente. "Tenho mais mês do que salário" é a piada infame dos apertados horários de almoço em ambientes que beiravam acampamentos em zona de guerra, com banheiros nojentos e 'refeitórios' puídos.
Daniel tinha 5 funcionários. Não usava eufemismos hipócritas chamando-os de 'colaboradores'. A verdade era que eram pessoas que funcionavam pra ele, portanto funcionários, gente que exerce função. Muito seco mas igualmente nobre.
Elaborara um modelo complexo de ganho, repartindo com quase igualdade o que a equipe amealhava. Os salários na Green & Green tinha variação máxima de 20% entre a equipe. Ninguém ganhavam menos que 5 mil reais (queria chegar no salário mínimo proposto pelo DIEESE e estava quase lá) - mesmo assim ele lucrava. Daniel achava que se eles trabalhassem sem se preocupar em arranjar outro emprego ou renda suplementar, obviamente trabalhariam mais felizes. Felicidade sempre foi produtiva. Tinha um rígido programa de trainee e seleção. Dizia que só trabalhava com gente 'emocionada e emocionável'. Quem não quer trabalhar com os melhores? "Os melhores custam - e valem", sempre dizia.
Além do salário, ele queria dar prêmios individuais avulsos. Contudo, no Brasil, incomodava-lhe o fato de que presentear funcionários era um entrave legal. Márcia, sua engenheira financeira, ficava satisfeita de trabalhar para um idealista, mas sempre o alertava:- "Se der presente, fica incorporado ao salário; se for recorrente, mais passível de processo trabalhista'.
Ele usualmente se 'arriscava' distribuindo envelopes surpresa, com cheques que faziam a diferença num orçamento mensal. Também dava dias de folga surpresa. Esperava a equipe chegar, chamava-os em tom grave para a sala de reuniões e tinha um prazer sensacional em dizer "Vocês... (com uma pausa dramática) ...estão livres para fazerem o que quiserem hoje. Aproveitem o dia!". Daniel tinha desprezo por empresários que se orgulhavam de apenas 'pagar tudo em dia, tudo certinho'. No Brasil você pode estar totalmente legalizado com seus funcionários e mesmo assim isto não o qualificava como uma pessoa justa.
Mesmo com a alegada alta carga trabalhista, incidente sobre cada contrato de trabalho, a opulência e pujança da vida dos empresários tornava difícil esconder o quanto ainda compensava ser quase o dono de uma pessoa no Brasil. Ainda assim, pagar pelo direito de presentear um funcionário parecia ser muito injusto.
Na semana seguinte, chegou cedo, preparou uma mesa de café da manhã e esperou que todos chegassem. As instruções em bilhetes, eram para tomar o café e entrar numa van que os esperava em frente ao prédio. Desceram e a van estava lá. O motorista - que eles não conheciam - limitou-se a dizer:- "O senhor Daniel os encontrará na chegada". Nunca haviam tido motivos para não confiarem no chefe até então, de modo que entraram.
Uma pequena viagem de 20 minutos e entram num campo de golfe. Parecia outro país, outro planeta. Grama impecável. Tudo limpo. Todos já eram esperados. Uma guia os levou a vestiários onde deveriam por roupas apropriadas. "Nunca joguei golfe na vida..!" meio que protestou Mara, do CRM. A guia prosseguiu com as instruções:- "Cada armário tem um cadeado com chave. Deixem aí suas roupas e seus celulares, bem como as mochilas e bolsas de serviço". Por fim, seguiram as ordens. As roupas, na medida correta de cada um, eram finas - de alto nível, mesmo para os padrões do golfe. Brancas desde os tênis, praticamente iguais, não fosse a faixa colorida nas mangas e golas, todas diferentes entre eles. Na saída do vestiário, três carrinhos elétricos de golfe estavam reservados com uma placa:- "Equipe Green & Green". Subiram.
O gramado exuberante e o dia de sol - mas com temperatura agradável - eram quase surreais numa manhã de quarta-feira no 'escritório'. De longe ainda, viram que Daniel estava sob um gazebo com mesa, cadeiras e - mais comida! Um brunch respeitável.
Cumprimentou a todos e agradeceu o seguimento das instruções. Falava num volume baixo, no limite da audição. Sentou-se na ponta da mesa e todos se encurvaram na direção dele, sentados, para conseguirem ouvir:-
"Deus sabe o quanto eu quero recompensá-los de maneira justa pelo trabalho valoroso que me prestam..."
"Mas... você já faz isto Daniel" - interrompeu Lívio, responsável pela formação dos trainees - "...somos felizes de trabalhar para você."
"Obrigado Lívio, mas deixe-me terminar - emendou Daniel no estranho volume baixo - vou direto ao assunto". Tenho motivos para confiar em cada membro da minha equipe. Ao mesmo tempo, tenho motivos para não confiar cegamente em nenhum homem na face da Terra. Infelizmente, minha vontade de recompensá-los e presenteá-los quando e do jeito que eu quiser, é um exercício de confiança unilateral. Cada envelope, cada cheque de abono, poderia ser usado no futuro, no eventual desligamento de alguém, como se fosse uma coisa suja e ilegal, um 'pagamento por fora'. Muito além do desgosto com a despesa injusta, eu ficaria muito decepcionado comigo mesmo de ser punido pela minha generosidade. Castigado pela minha ingenuidade".
"Chefe..."- o lamento era esperado e começou com Josef, seu funcionário mais antigo - "...nunca faríamos isto com o senhor.
"Josef, no fundo eu sei disto, mas se fizer um exercício simples de colocar-se em meu lugar, entenderá rapidamente meu problema. Acredite, uma parte de mim sente-se ridícula nesta reunião. A outra, aliviada por ter chegado numa solução para isto. A empresa nunca teve tanto lucro e eu sei que já ganho muito mais que o suficiente para viver de maneira confortável, com 4 meses de férias por ano, viajando para onde quiser. Isto é resultado direto do serviço de vocês. Eu me peguei com inveja do Pablo Escobar, que sacava um pacote de grana e dava pra quem ele achava que merecia, a hora que ele merecia. Sem medo de deslealdades futuras."
"Ele os matava, né chefe" - riu Josef nervoso.
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"...e, como não posso e não quero lançar mão deste expediente..." - emendou aproveitando a deixa, empolgando-se na voz, mas rapidamente voltando ao tom baixo que tornava tudo aquilo surreal - "...criei um outro dispositivo. A coisa é assim:- nós vamos repartir o risco. O risco inerente de eu dar presente, que era só meu, agora vai ser seu também. Será repartido junto com o lucro desta firma..."
Ninguém respirava. A comida, intocada.
"Instalei duas coisas no meu escritório esta semana. A primeira, um velho cofre vermelho, de ferro. A segunda, uma câmera apontada diretamente para ele. O cofre é aberto um cartão magnético, que ficará na minha gaveta central da minha mesa. De vez em quando eu colocarei seus envelopes de recompensa no cofre. Sem nenhuma sinalização ou aviso prévio, eu depositarei neste cofre, em dinheiro vivo, recompensas para vocês. Sem nada escrito neles. Nenhuma indicação de que são para vocês, exceto uma".
"Como saberemos de quem é cada envelope?" - meio que protestou, nervosa e incrédula, Mara, que já começava a duvidar da sanidade do chefe.
"...Exceto uma" - repetiu Daniel, grave - "as cores na sua gola e mangas das camisas que vestiram agora, são a única indicação. Um pedaço de papel dentro de cada envelope, na cor respectiva, indicará o seu proprietário por direito. Esta, contudo, pode não ser a parte que mais vão estranhar".
"Tem mais?" - inquiriu Lívio.
"Entendam senhores, que cada vez que eu dou um presente para vocês, eu pontilho meu pescoço, sendo obrigado a confiar de que não usarão o presente contra mim, no futuro, dada a nossa bem-intencionada, mas insana legislação trabalhista, neste aspecto. De agora em diante, o risco é mútuo. Estas são as regras para ter acesso ao cofre:- Regra um:- vocês terão que entrar no meu escritório apenas na minha ausência. Regra dois:- vão abrir minha gaveta central, com a chave que fica pendurada num alarme. Regra três:- retirando a chave, vocês tem 2 minutos antes que o alarme toque, para pegar o cartão magnético, abrir o cofre, abrir cada envelope e achar a cor correspondente. Regra quatro:- esconder o envelope na roupa, fechar o cofre, devolver o cartão, trancar a gaveta e pendurar a chave para interromper o alarme..."
"Mas... Parecerá que nós o estamos roubando, Daniel!" - irrita-se Mauro, que ouvira calado até então.
"Não só isto Mauro, tudo estará sendo gravado!" - confirma Daniel.
"Meu Deus! Que coisa louca!" - dispara Lívio.
"Como sabemos que não usará esta gravação contra nós, chefe?"
"Não saberão. Simples assim. Não pretendo usar. Não quero usar. A minha intenção é toda a informação que terão".
"Mas assim nós seremos obrigados..." - Mara raciocina roendo as unhas.
"...a confiar em mim." - completa Daniel, satisfeito - "agora a faca tem dois gumes. Claro que eu não posso obrigar ninguém a fazer isto, só os que desejarem pegar seus bônus e recompensas. Adianto já que os valores nos envelopes serão parecidos, mas não exatamente iguais. Também não receberão ao mesmo tempo, todos de uma vez. Pessoas podem ser recompensadas, segundo meu critério, mais de uma vez, enquanto outros ainda aguardarão. Eu respondo porquê:- o dinheiro é meu e faço o que eu quiser com ele. Cada um será generosamente recompensado e isto deve contentá-lo, impelindo cada um a conter a própria ânsia gananciosa ou sentimento de inveja. Não se trata de salário ou direito - isto vocês já recebem muito acima da média podre do mercado. São presentes. Dou a quem eu quiser. Não farei isto de maneira secreta e particular. Vocês tem que aprender a alegrar-se com a alegria do seu colega. Você pode abrir o cofre e perceber que não tem nada para você, mas tem para seu colega. Você pode avisá-lo, mas fora da minha presença. Poderão organizar-se para não terem que cada um, conferir o cofre individualmente. Contudo, não podem entregar a recompensa do seu colega. Ele tem que pegá-la pessoalmente. A última regra é esta:- hoje é a primeira e última vez que eu converso com vocês sobre isto. Nunca mais conversarão comigo sobre isto. Instruirão cada novo funcionário sobre o esquema generoso, de aparência criminosa, sem que eu veja".
"Mas chefe, sem querer parecer auto-justa - indaga Mara com cautela - e se nós acharmos que, eventualmente, seu critério esteja errado, recompensando mais a uns do que a outros? Como poderemos resolver isto sem conversar com você?"
"Simples:- ninguém está impedido de repartir sua recompensa, nem mesmo de dá-la toda aos pobres, se assim quiser. É fácil ser justo com o dinheiro dos outros. Terão total liberdade de serem justos com seu próprio dinheiro, reparando qualquer aparente injustiça minha, fazendo do seu dinheiro o que desejarem, inclusive depositando num fundo cujo responsável o reparta exatamente entre vocês. Agora senhoras e senhores, quero dizer que esta reunião jamais aconteceu. Não sou membro deste clube e nunca estive aqui, conforme poderão comprovar, se quiserem, com cada empregado do campo. Nunca mais voltarei a falar sobre este assunto com vocês, durante ou após o contrato de trabalho, por toda a vida. O day-use do do clube está pago pelo dia todo - vocês estão de folga hoje mas, se eu fosse vocês, daria um pulo no escritório antes do fim do expediente. Eu tirarei todo o dia de folga e não volto mais para o escritório hoje."
Daniel levantou-se, todos o cumprimentaram com os olhos marejados e a voz trancada. Nenhuma palavra foi dita. Tentavam assimilar a grandeza e a originalidade daquele dia. À medida que viam Daniel se distanciar com o carro elétrico do campo, jogaram-se nas cadeiras, incrédulos.
A cena que se desenrolou no campo de golfe naquela manhã era surreal. As palavras de Daniel foram proferidas em um tom de voz quase sussurrante, criando um clima de suspense e intriga. Cada regra apresentada por Daniel adicionava uma camada de complexidade ao jogo, ampliando a tensão e o mistério. Os funcionários sentindo-se parte de algo que ia além do comum.
A proposta de Daniel não era apenas uma forma de recompensar seus funcionários; era um desafio à sua confiança e ao seu senso de justiça. Ele estava disposto a compartilhar o risco, fazendo com que a responsabilidade de guardar o segredo fosse mútua. A ideia de gravar as interações com o cofre adicionava um elemento de vigilância que aumentava a sensação de um thriller psicológico.
Os funcionários ficaram em silêncio, processando o que estava acontecendo. Eles estavam diante de uma escolha - aceitar o desafio e jogar o jogo secreto de recompensas ou se afastar da oportunidade. As perguntas surgiram, o ceticismo pairou no ar e o receio de possíveis injustiças futuras foi expresso.
As ações de Daniel não eram apenas sobre recompensar financeiramente sua equipe, mas também sobre desafiar sua perspectiva e forçá-los a confiar nele da mesma maneira que ele estava confiando neles. A situação toda parecia uma trama de um filme de suspense.
Com um final que deixou perguntas no ar, a história se encerra. A equipe da Green & Green estava diante de um dilema - aceitar o desafio de Daniel e participar de um jogo secreto de recompensas ou recusar-se a fazer parte disso. Enquanto o mistério permanece, a única certeza é que a vida deles nunca mais seria a mesma na firma. O presente, escondido dentro do cofre vermelho, carregava muito mais do que um valor monetário; carregava o peso de uma decisão que mudaria a dinâmica entre patrão e funcionários para sempre
Daniel estava satisfeito. Enquanto se afastava, pensava que sabia que era uma ideia boa, mas não perfeita. Ficou com uma tremenda curiosidade em relação a que seus funcionários fariam primeiro. Mesmo assim, não arrependeu-se nem por um momento do tipo de câmera instalada no seu escritório:
- Completamente falsa.