O fardo das decisões
Talvez você já tenha ouvido falar em narrativa interativa, um estilo de ficção em que o roteiro não é definitivo e predeterminado, muito comum em jogos de RPG em que os próprios jogadores criam as histórias.
Se você quiser ter uma experiência de narrativa interativa, pode inserir o seguinte prompt no chatGPT: "Vamos jogar um jogo de narrativa interativa. Eu faço as escolhas."
Uma forma parecida de narrativa interativa comum em diversas formas de entretenimento, principalmente videogames, é a que o espectador ou jogador realiza escolhas ao longo da trama que influenciam o roteiro e resultam em um final específico. Ou seja, ela apresenta diversas estruturas predeterminadas, em vez de uma estrutura totalmente aberta, como na narrativa interativa em sua forma pura.
Esse tipo de experiência é interessante porque nos coloca para refletir sobre decisões que provavelmente não enfrentaremos na realidade, como tirar ou poupar a vida de algum personagem.
Embora tenhamos a sensação de realmente precisarmos ponderar os critérios para tomar a melhor decisão, existe uma questão que faz com que toda essa experiência perca parte de seu valor em relação a uma decisão real: você poderá recomeçar e conhecer as consequências de todas as decisões possíveis. Dessa forma, ficará mais fácil julgar em retrospectiva qual era a melhor decisão.
Essa é o grande ponto que quero chegar com este artigo: uma vez que tomamos uma decisão, precisaremos conviver com o fardo de nunca saber qual seria o resultado dos outros caminhos possíveis. Não podemos retroceder, nem pesquisar na internet os cenários alternativos. Mesmo que você volte no restaurante para pedir o prato não escolhido da primeira vez, a experiência não será a mesma. Para nós, humanos racionais, isso é um peso gigantesco.
Aproveitando que a série do Senna foi lançada nesse fim de semana na Netflix, vamos tomar seu exemplo.
Nos dias que antecederam a sua morte, Ayrton Senna foi confrontado com a seguir decisão: correr ou não correr o Grande Prêmio de San Marino, em Ímola, na Itália. Por sabermos a consequência da decisão escolhida pelo brasileiro, somos tomados pela sensação de que a melhor decisão era não correr, principalmente porque todos os sinais indicavam a existência de diversas irregularidades, além do abalo mental por conta dos acidentes anteriores.
Inclusive, assistir a essa parte da série é angustiante. Eu torcia, em vão, para que o personagem fosse pelo outro caminho.
Decisões em retrospectiva sempre serão enviesadas, pois saber a consequência de uma das opções é uma forma de viés. A verdadeira decisão é tomada quando as opções estão em igualdade, quando precisamos decidir com base em nosso conjunto de crenças e valores.
É justamente por isso que também devemos evitar tomar decisões pelos outros, caso eles sejam plenamente capazes de decidirem por si. Não seremos nós a conviver com a consequência. Não seremos nós a questionarmos todos os "e se".
E pelo mesmo motivo devemos evitar que outras pessoas tomem decisões por nós, ou que nossas escolhas sejam predominantemente influenciadas pela maioria.
Ao mesmo tempo, uma vez escolhido um caminho, e diante da incerteza em relação aos demais, aceitamos que jamais saberemos qual seria a melhor decisão a ser tomada. Por isso, gosto de dizer que nunca estamos totalmente certos sobre uma decisão tomada, mas definitivamente seguros sobre ela.
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Repare que aqui estou falando exclusivamente sobre decisões concorrentes, mas que estão alinhadas às nossas crenças e aos nossos valores. Pois quando algo fere ao que genuinamente acreditamos, a decisão correta se torna muito mais evidente, embora nem sempre fácil de ser tomada. Por outro lado, em algumas situações, a consequência, seja ela boa ou ruim, definitivamente não importa, tão forte é a influência de nossos valores nela.
Um jogo que soube muito bem abordar o peso da decisão é o belíssimo Ghost of Tsushima.
A aventura se passa no Japão feudal, durante a primeira invasão mongol. O seu personagem é um Samurai sobrevivente de uma batalha que aniquilou quase todos os samurais da ilha de Tsushima. Ao longo do enredo, você é forçado a agir contra o código de conduta dos guerreiros samurais para garantir a sobrevivência dos habitantes da ilha, bem como criar uma resistência ao exército invasor.
Ao final, o jogo se encerra com uma escolha: poupar ou tirar a vida de um personagem de grande relevância para a narrativa. Todo o jogo é cuidadosamente escrito para não haver uma decisão correta. Para cada escolha, há uma cena final que reforça que aquela escolha faz sentido. Ou seja, o enredo não toma partido, e é o jogador o responsável por escolher qual o final mais adequado, a partir da visão que formou após dezenas de horas de gameplay.
Por não mostrar as consequências de cada uma das decisões, o debate entre qual é a decisão mais coerente se mantém até hoje, quatro anos após o seu lançamento. Muitos jogadores aguardam um novo jogo como continuação para saber qual o final escolhido pela desenvolvedora, mas a sequência da franquia acontecerá séculos depois e com uma nova protagonista, demonstrando que provavelmente a intenção é manter o mistério.
Assim como na vida real, é justamente esse mistério sobre as consequências das decisões, e a impossibilidade de, em alguns momentos, não sermos capazes de definir claramente qual é a melhor decisão, que dão o seu verdadeiro peso.
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