O IMARCESCÍVEL

WILLIAN FAGIOLO

Vou direto ao assunto, mas não se esqueçam, a diferença entre a verdade e a ficção é que a ficção faz mais sentido, segundo Mark Twain.

Preciso advertir que parte deste texto é pura ficção, parte é pura verdade, qualquer semelhança com a vida real terá sido mera coincidência, ou intencional.

Descobri que tenho um amigo imarcescível e inoxidável. Ele crê com absoluta convicção e homilética em rigorosamente nada. Sem ser homiliasta, nem apologético, é profundo conhecedor da natureza humana. Faz sentido.

Quando nos conhecemos, sua frase de apresentação foi: Não haja entre nós doestos, meu bom cavaleiro... Levei tão a sério que fui ler Alexandre Herculano. Mas a locução que mais me chamou a atenção foi sua citação seguinte, dita em tom grave, solene, porém com muita modéstia: Creavi coelum et terram plantas e arbores intra sex dies et quievi die septimo (não sei se ouvi direito).

Nas suas raríssimas preleções religiosas, às vezes reconhece, num gesto magnânimo, que pode ser superado apenas por determinados Hebreus, Lucas e em alguns trechos de Paulo. Talvez, talvez, por Santo Agostinho ou São Tomaz de Aquino, talvez.

Nos seus incomuns momentos de lazer gosta de caminhar sobre as águas, mas o faz como um brâmane eremita, para não ser confundido com Aquele.

De origem nobre, educado em Harvard, com uma fortuna considerável, tem que viver disfarçado, por isso e mais aquilo, utiliza-se de pseudônimos, heterônimos, codinomes, nomes incomuns, simbólicos. É autor e personagem ao mesmo tempo. Sua família fez fortuna com a compra e subsequente venda de temperos e condimentos com lucros espantosos, todos plantados em seu quintal.

Seus atuais codnomes são: Optimisticus, Irritabilis, Intempestivus, Erectus, Eroticus, Cinicus, Isemptus, Reflexivus, Reactionarius, Imperterritus, Caducifer, Parvulus, Psychrolutes, Scriba, Achyropictus, Volitans, Photopticus e Manuel Archanjo.

Às vezes, imita o estilo e a vida de suas próprias criações, por ser ele mesmo um escritor verídico e fictício, com um grande poder de observação e dedução, um misto de Machado, Euclides, Aurélio, Carlos Estevão, Carlos Zéfiro, Sherlock Holmes e Dr. Watson . Somos atemporais e extemporâneos, vivemos no presente, no passado e no futuro. No passado ele é sempre mais-que-perfeito. Escreve muito, lê paca.

Durante muito tempo, ainda no começo da amizade, acreditei tratar-se de uma, duas pessoas, ou várias, de tanta cultura acumulada numa só pessoa.

Na verdade nos conhecemos há tempos. Éramos vizinhos sazonais. Só quando chovia.

Na rua onde ele ficava e onde também moravam os seus tios, não me esqueço do gato zarolho do vizinho em frente, um comerciante judeu que tinha uma bandeira americana pendurada na parede da sala. Eu achava tudo engraçado porque o senhor Jacó, com aquele sotaque, gostava de contar piadas sobre ele mesmo.

Mais ou menos assim:

Samuel encontra-se com o velho amigo Jacó.

- E aí, Jacó, quanto tempo! Como vai, meu amigo?

- Vou muito mal!

- Porque Jacó, o que foi que aconteceu?

- Minha mãe morreu na semana passada!

- Não diga! Meus sentimentos! O que é que ela tinha?

- Infelizmente, pouca coisa. Uma casa, duas lojinhas no centro da cidade e um terreninho no interior!

Eu e meu amigo, naquelas férias, rimos muito e nos divertimos mais que do que o esperado, trocamos muitas figurinhas, principalmente as figurinhas de seu time, o Corinthians, que na época jogava com Rato - Ditão e Chico Preto - Jango, Brandão e Dino - Cláudio, Servílio, Baltasar, Eduardinho e Hércules. É mole? Segundo ele, uma phase muito boa do Timão. Pelo menos na nossa imaginação, presenciamos o dia em que os cinco operários de nomes Joaquim Ambrósio, Carlos da Silva, Rafael Perrone, Antônio Pereira e Anselmo Correia se reuniram com mais oito rapazes e fundaram o "Sport Club Corinthians Paulista", após assistirem um jogo da equipe de futebol da Inglaterra. O presidente escolhido por eles foi o alfaiate Miguel Bataglia que, já no primeiro momento, afirmou profético: "O Corinthians vai ser o time do povo e o povo é quem vai fazer o time". Grande figura, o Bataglia.

Ferino, inquieto, irônico, meu amigo fica horas e horas matutando se, invariavelmente, a literatura é superior à vida e vice-versa.

Quando pequeno, ele ficava horas conjeturando se, por exemplo, Jeff Chandler deveria, ou não, casar-se com Esther Williams, ou se era mesmo verdade que Clark Gable tinha um mau hálito horrível, ou, ainda, se Marilyn Monroe cheirava mal, pois ela raramente tomava banho.

Marilyn dormia nua e comia muito na cama, deixando o que ficava no prato debaixo dos lençóis, adormecendo em cima da comida. Ela sofria daquilo que os mais antigos descreviam como uma “irritante síndrome intestinal”. Hoje, com mais liberdade e irreverência, o caso seria conhecido por “flatulências em excesso de los gases intestinales”, ou seja, Marilyn tinha inoportunos ataques de peidos, sem controle. Era uma incorrigível peidorreira. Dizem que este foi o motivo que fez com que Clark Gable fugisse do tal “tórrido affair”, tão esperado na época entre os dois.

A parada era dura, pois Vivien Leigh, a atriz principal de "E o Vento Levou", que contracenou com Clark Gable no filme, tinha horror às cenas em que era obrigada a beijá-lo por causa do repugnante mau hálito do ator. Gable também colava as suas orelhas de abano com durex. Coisa impressionante!

Voltarei ao assunto em momento oportuno e assim por diante.

Mas a vida é assim. Na verdade, creio que todos peidam. Isso é verdade!