O tempo não para
Quase dois meses se passaram desde a conscientização da gravidade da pandemia. Quase dois meses – alguns mais, outros menos – que adotamos o distanciamento social e permanecemos em nossas casas. Muita coisa mudou.
Revimos nossos hábitos. As telas tornaram-se uma extensão de nós e daqueles que amamos. Olhamos o mundo pela janela e ele nunca olhou tanto para dentro de nós como nesses dias. O tempo não para, diria Cazuza. Mas ele parou.
A sensação é de que vivemos muito e não vivemos nada. Vimos a crise da saúde se alastrar pelo mundo. Presenciamos a crise econômica e os impasses – cruéis – que para muitos ela gerou. Estamos assistindo, de dentro de casa, a democracia ser diariamente golpeada por um presidente que ainda não entendeu o seu lugar institucional, que não conheceu o seu posto na História. Assistimos impotentes à anomia entre os entes federativos e os poderes (quem tem responsabilidade sobre o quê?). Sentimo-nos desamparados. Assistimos demais e fomos pouco assistidos.
Vimos quase meio ano se passar e todos – ou quase todos – os nossos planos serem refreados, prorrogados, adiados. Vimos o tempo parar, mas ele não parou. A ansiedade tomou conta dos nossos dias. Incorporamos novas atividades e tentamos esconder nossas incertezas por trás das novas rotinas. Preenchemos nossos dias para que eles parecessem diferentes. Fracassamos irremediavelmente na maioria deles. Culpamo-nos por não conseguirmos ser altamente produtivos todos os dias. Criativos todos os dias. Emocionalmente inteligentes todos os dias.
Preocupamo-nos com a saúde dos nossos entes queridos, com a nossa própria saúde e com o sistema de saúde pública do país. Tememos pelo colapso da economia, pela instabilidade política, pelo descrédito institucional. Abrimos mão da nossa liberdade individual pelo bem coletivo. Aprendemos muito sobre paciência, sobre corresponsabilidade e sobre compaixão e o tempo, o tempo não parou.
O tempo não parou para desconstruirmos os arquétipos tradicionais, para nos despirmos de nossas vaidades e para abrirmos mão de nossa liberdade. Não parou para reinventarmos nossa forma de viver e de trabalhar. Tampouco parou para que aprendêssemos a amar à distância, a respeitar os limites do coletivo, a enfrentar o perigo do desconhecido. Ele não parou para olharmos para dentro e atacarmos nossos medos. Ele tem esse constante hábito de nunca parar.
Quem parou fomos nós. Fomos obrigados a parar. A olhar. A nos reinventar. Fomos incitados a reparar, quase obrigados a atender à orientação de Saramago – se podes olhar vê, se podes ver, repara. Percebemos então, que somos todos ondas desse mar agitado e inconstante, mas que somos também o próprio mar. Um repuxo e tudo se movimenta. O tempo não para. A gente também não.