O tiroteio na catedral e a legítima defesa de terceiro
As cenas são estarrecedoras e foram exibidas à exaustão pelas redes de televisão em seus principais telejornais: na escadaria da icônica Catedral da Sé, um homem armado luta com uma mulher que tenta desarma-lo. Em seu socorro vem um homem, que depois se soube era um sem-teto, que empurra o agressor; este, desvencilhando-se, atira no peito do, digamos, socorrista, e, em seguida é alvejado por inúmeros tiros disparados por soldados da Polícia Militar. O sem-teto, encostado na parede da catedral, aos poucos desliza em direção à morte; o agressor inicial, alvejado por diversos projéteis, também sucumbe.
As cenas, especialmente a vivida pelo sem-teto (pelos telejornais chamado de “morador de rua”, termo que desagrada os assistentes sociais, que preferem denomina-los de “pessoa em situação de rua”; eu, porém, prefiro a expressão “sem-teto”, uma denominação quase universal: homeless e sin-techo, para citar apenas duas), remete a um tema de Direito Penal que é muito discutido na Europa e no Brasil olimpicamente ignorados pelos penalistas: a legítima defesa de terceiro.
Tanto a legítima defesa própria quanto a de terceiro estão contidas na descrição do artigo 25 do Código Penal: “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito SEU ou de OUTREM”. É comum na doutrina a análise de cada um dos termos que compõem essa causa de exclusão da ilicitude, o que não farei aqui, mas é de se ressaltar que, reconhecido que a pessoa agiu em legítima defesa, o ato por ela praticado não é considerado criminoso; em outras palavras, é lícito.
A legítima defesa própria, vale dizer, aquela situação em que a pessoa atua em seu próprio benefício, é uma faculdade, ou seja, a pessoa pode ou não concordar com a agressão – e aqui não se aplica o sentido vulgar da palavra, como sinônima de lesão corporal [a pessoa sofreu uma agressão] - e não pretender se defender. A doutrina alemã (Claus Roxim) dá um exemplo curioso: a pessoa acorda durante a noite por causa de um barulho na garagem de sua casa e ao espiar pelo vitrô vê alguém furtando o seu carro e decide não tomar providência. Outro exemplo, este meu: a pessoa é atacada com um tapa no rosto e antes que o agressor a estapeie de novo, ela, numa atitude bíblica, oferece a outra face.
Ao presenciar uma agressão – aqui ainda no sentido jurídico, qual seja, o de ataque a um bem jurídico - a outrem, a pessoa tem a faculdade de ir em auxílio do agredido, podendo, ao contrário do que pensa o conhecimento vulgar, deixar de prestar ajuda. Na doutrina penal brasileira, somente um autor entende de forma contrária, ou seja, de que pessoa que presencia a agressão tem a obrigação de intervir, mas por ser algo tão esdrúxulo, não será considerado. A conclusão é simples: se a pessoa tem a faculdade de defender-se, por que ela teria a obrigação de ir em socorro de outrem?
O que as cenas na escadaria da Catedral da Sé mostraram foi exatamente aquilo que preocupa a doutrina penal alemão (e é olimpicamente ignorado pela doutrina brasileira): aquele que vai em socorro de outrem que é agredido pode, ele mesmo, tornar-se vítima da agressão, muitas vezes ao custo do bem maior, a própria vida.
A atitude do sem-teto foi digna de elogios, porém não é isso que o Direito Penal impõe às pessoas: atos de heroísmo que podem redundar na morte do socorrista.