Os entulhos da hiperinflação

Os entulhos da hiperinflação

Os entulhos da hiperinflação que ficaram e que não são discutidos

Segundo o economista Roberto Troster, os entulhos do período hiperinflacionário, que não foram corrigidos pelo Plano Real, são uma das razões pelo baixo crescimento do país.

Por

Jorge Priori

-

17:13 - 26 de junho de 2024

Tendo em vista a celebração dos 30 anos do Plano Real, conversamos com o economista Roberto Luiz Troster sobre os entulhos do período hiperinflacionário que ficaram e que, praticamente, não são discutidos.

Quais são os entulhos do período hiperinflacionário que ficaram e que ninguém discute?

O principal é que a intermediação financeira não se adaptou à moeda estável. Na época da hiperinflação, a intermediação foi muito importante, pois conseguia preservar o valor da moeda nacional e dar crédito de curtíssimo prazo durante as compensações de cheques. Ocorre que a hiperinflação e os cheques acabaram, mas nós continuamos com o mesmo sistema de intermediação.

Nós também temos a tributação do crédito, sendo que o Brasil é o único país do mundo que tem esse tipo de tributação. Quando uma pessoa pega dinheiro emprestado em um banco, além de pagar os juros, ela tem que pagar o imposto sobre essa operação (IOF – Imposto sobre Operações Financeiras). Na prática, como o recolhimento do imposto é de responsabilidade da instituição que dá o crédito, isso aumenta o custo da operação.

Ainda relacionado à intermediação, nós temos os depósitos compulsórios, que estão na ordem de R$ 600 bilhões. Isso porque quando os bancos captam recursos, eles têm que deixar parte desse valor no Banco Central. Essa era uma forma de rolar a dívida pública que fazia sentido, pois numa época de inflação alta, o Brasil tinha um “imposto inflacionário” na ordem de 3,5% do PIB, sendo que o governo usava os depósitos compulsórios para se apropriar de parte desse “imposto”. Hoje, isso não faz mais sentido.

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Com relação às indexações, além de elas retroalimentarem a inflação, elas alimentam a ineficiência. Isso porque nós temos diversos tipos de indexadores no crédito, o que acaba sendo uma salada de índices que complicam muito, já que o preço do dinheiro no tempo é a taxa de juros. Ponto. Não é a taxa de juros mais CDI, por exemplo. Essa dinâmica do crédito, que fazia sentido no sistema hiperinflacionário, não faz sentido hoje.

Outra distorção é a correção de dívidas fiscais. Quanto pior for a administração das finanças por parte do governo, maior o déficit, maior a inflação e maior a Selic, que é o índice de correção das dívidas fiscais. Para que você tenha uma ideia, o Brasil tem, aproximadamente, R$ 5 trilhões em dívidas fiscais, com grande parte corrigida pela Selic, e 25 milhões de processos, só que desde o início do Plano Real, a Selic cresceu 10 vezes mais que a inflação.

Nos últimos 30 anos, a inflação foi menor que a inflação dos 6 meses anteriores ao início do Plano Real. Nesse sentido, parabéns, mas esse sucesso não se refletiu no crescimento. Uma moeda estável é um instrumento para fazer uma economia crescer, aumentando o bem-estar da sociedade, mas isso não está acontecendo.

Qual a sua avaliação sobre a continuidade da indexação, onde a inflação do ano anterior alimenta a inflação do ano seguinte?

Por mais que existam alguns itens que precisam ser indexados, os preços deveriam ser de mercado. Como a inflação é um conflito distributivo, pois nem todos os preços aumentam da mesma maneira, existem algumas coisas que precisam ser indexadas, como, por exemplo, as aposentadorias até um determinado nível de renda. A partir desse nível, não seria preciso indexar as aposentadorias. O problema é que no Brasil, além de se indexar, se abusa das indexações. Por exemplo, quando se indexa as aposentadorias ao salário mínimo, com o objetivo de se aumentar a renda, nós temos mais déficit num país que já está com um déficit brutal.

O Chile, da mesma forma que o Brasil, é um país que teve um passado hiperinflacionário destrutivo, mas que utiliza o sistema de juros simples. O sistema de juros compostos utilizado pelo Brasil pode ser considerado um desses entulhos hiperinflacionários que ficaram?

Sim, pode, até pelo valor dos juros. Eu já fiz um artigo com uma juíza sobre um processo que ela julgou onde a correção de uma dívida gerada pela venda de um Fusca estava num montante que dava para comprar uma Ferrari, já que os juros sobre juros viram uma bola de neve incontrolável.

Com relação aos depósitos compulsórios, como eles impactam, na prática, a economia?

Os depósitos compulsórios são um custo. Se eu te falar que metade do seu salário vai ficar congelado no banco, isso será um custo para você. Como os bancos são obrigados a deixarem congelado parte do dinheiro que captam no Banco Central, isso aumenta o custo de captação. Se nós não tivéssemos os depósitos compulsórios, o custo do dinheiro baixaria.

Uma coisa que ninguém fala, mas que já começa a ser discutido, é a colocação do custo do dinheiro nos índices de inflação. Da mesma forma que esses índices englobam itens como água, luz, feijão e arroz, eles também deveriam englobar o quanto as pessoas gastam com juros.

Com a proximidade dos 30 anos do Plano Real e com tantos discursos superbonitos que estão sendo feitos, não seria uma boa oportunidade para se discutir uma segunda fase do Plano Real e a correção dos entulhos do período hiperinflacionário que ficaram? 

Seria oportuno. Eu até estou trabalhando num artigo sobre os próximos passos do Plano Real depois de 30 anos. De forma geral, nós tivemos algumas mudanças, como a política cambial. No início do Plano, nós tivemos uma política anti-inflacionária com agregados monetários que não deu certo. Depois disso, foi implementada a banda fixa, que funcionou por um tempo. Em 1999, veio o Armínio Fraga com o tripé câmbio flutuante, metas de inflação e responsabilidade fiscal.

Na intermediação, se por um lado nós tivemos alguns avanços, como o SPB (Sistema Brasileiro de Pagamentos), por outro nós tivemos retrocessos, como o aumento da tributação do crédito e dos depósitos compulsórios.

Todo mundo fala dos benefícios do Plano Real, mas o seu custo é que nós não temos crédito compatível com a sofisticação do sistema financeiro. Isso faz com que tenhamos mais pessoas negativadas, menos crédito e menos crescimento. Se quisermos usufruir do que foi feito pelo Plano Real, nós temos que modernizar isso.

Você vê alguma discussão nesse sentido no Congresso Nacional?

Não, nenhuma

Por exemplo, até hoje existem cálculos de dívida onde o saldo devedor sofre correção monetária para depois haver a incidência de juros. Por mais que isso seja um absurdo, isso é feito com a maior naturalidade do mundo e sem qualquer questionamento. Depois de 30 anos do Plano Real, não corremos o risco de esses entulhos do período hiperinflacionário serem incorporados a nossa realidade e deixarem de ser questionados de uma vez?

Sim, pois as pessoas se acostumam com esses pesos a mais. E o custo está aí, com o país crescendo 2% ao ano por causa de um peso que tem que ser carregado. Isso se transformou em menos crescimento, menos educação, menos saúde, menos saneamento e menos infraestrutura.

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