PAULO CORTEZ - MEMÓRIA NARRADA

PAULO CORTEZ - MEMÓRIA NARRADA

                    

-Eu nasci no dia vinte e sete de junho de 1938, mas no documento foi registrado dia dez de julho de 1938. Nasci na Barraca, uma pequena comunidade rural onde ficava o sítio que nasci. O sítio onde nasci pertencia a meu tio Pedro Sanches Sanches, irmão de minha mãe. Pertencia a Planalto, mas naquele tempo Planalto não era nem cidade ainda, era apenas um distrito do município de Monte Aprazível, só se emancipou no dia três de abril do ano de 1949. Com o passar do tempo Planalto virou uma cidade. Planalto ficava perto de Zacarias, José Bonifácio, Macaubal, Barbosa e Nipoã. Eu nasci ali. Fui batizado em São Jerônimo, tinha uma igrejinha e uma venda. São Jerônimo era indo da Barraca no sentido Planalto. Ali era um cerradão e muito campo abandonado, terra vazia a perder de vista. Barraca ficava entre Planalto e Zacarias, bem no meio. Naquela época tanto Planalto assim como Zacarias eram Distritos de Monte Aprazível. O lugar onde eu morava todos chamavam de sítio, na verdade, era uma fazendinha, de uns oitenta a noventa alqueires. Outro lugar muito conhecido lá era a Água Reta. Ficava perto de Quatá. Eu nunca morei lá. Mas eu ia sempre lá. Tinha uns primos meus morando ali. Tinha um tio meu que tinha um sítio na Água Reta, ele se chamava José Cortez. Seu sítio tinha uns dez mil pé de café. Ele tinha vários sítios em outros lugares. Lembro que ele dizia que colocava seu dinheiro em em vários bancos diferentes, porque se um banco quebrasse ele não perderia todo o seu dinheiro. Esse meu tiro era precavido. Ficava em João Ramalho ao lado de Quatá. João Ramalho ficava perto de Tupã, Bastos, Paraguaçu Paulista, Quatá e Rancharia. Já Quatá ficava perto de Paraguaçu Paulista, João Ramalho, Tupã, Borá, Quintana e Basto. Eu ia sempre lá visitar eles. Eu não morrei lá, mas sempre ia lá. Esse meu tio depois mudou para o estado do Paraná, para a cidade de Umuarama, eu fui um dia, depois de muito tempo, visitar ele lá. Lá na Barraca eu não fiquei morando muito tempo não. Quando eu tinha uns quatro anos de idade meu pai mudou-se para o município de Mirassol, que ficava perto de São José do Rio Preto, Bady Bassitt, Nova Aliança, Jaci, Neves Paulista, Bálsamo, Mirassolândia e Ipiguá, foi tocar uma lavoura de café que estava prometendo uma colheita muito boa, mas no mês de setembro veio uma geada muito forte, queimou tudo, ficou só o toco. Isso foi lá pelo ano de 1942, um irmão de meu pai morava lá. Eu pequei uma broncopneumonia eu rolava de tão ruim que fiquei, ai meu pai me levou no médico em Mirassol, nós morávamos perto de Mirassol, tomei uns remédios e fiquei bom. Morrei na Barraca, em Mirassol, em Quatá, na fazenda Arroio, na fazenda Rancho Alegre que ficava perto do patrimônio Zacarias, morei em José Bonifácio, em São Simão. Zacarias era uma vilinha, mas depois de um bom tempo virou município, ficava perto de Buritama, Glicério, José Bonifácio, Penápolis, Planalto e Turiúba. José Bonifácio ficava perto de Barbosa, Ubarana, Mendonça, Nova, Aliança, Jaci, Neves Paulista, Nipoã, Planalto, Zacarias. Morrei também na fazenda fundão. Meu pai ficava migrando por todo o interior do estado de São Paulo a procura de trabalho. Aquele tempo quem não tinha sua terra era assim.

-Comecei a trabalhar na enxada com sete anos de idade. Ia cedo com meu irmão José com o fole para matar formiga saúva. Tinha muitas. Íamos cedo achava os buraquinhos dos formigueiros de saúva, marcava com uns pauzinhos, marcava onde elas estavam, com o sol quente elas se recolhiam num buraco, ai nós íamos com o fole matando-as. Lembro que tinha um ditado na época que dizia assim: “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”. Eu e meu irmão Zé estávamos dando nossa contribuição para o Brasil matando as saúvas com o nosso fole. Depois de matar as saúvas nós íamos trabalhar na enxada. Com vinte anos eu já tomava conta da casa, meu pai estava muito doente, ele fumava muito, tomava muito bicarbonato para tentar aliviar a dor da úlcera dele. Fez uma cirurgia do estômago, depois teve um derrame, viveu mais dois anos, ai teve outro derrame, ficou paralítico, viveu um tempo ainda, mas com muita dificuldade. Morreu no dia quatorze de fevereiro de 1964, na Fazenda Rancho Alegre, era uma quarta-feira de cinza chuvosa e triste. Ele tinha sessenta e três anos de idade.

-Meu pai, Francisco Cortez Perez e minha mãe Maria Salvadora Anastácia Sanches Sanches Cortez Perez, vieram da Espanha. Francisco Cortez Perez nasceu na Espanha no dia primeiro de janeiro de 1901, em Málaga. Veio para o Brasil com apenas cinco anos de idade, chegou em 1906. Seus pais, meus avós, eram Jacinto Cortez Perez e minha avó era Ana Cortez Perez. Não conheci meus avôs Jacinto e Ana. Não sei porque o meu sobrenome Cortez ficou no final do nome e não o Perez como era do meu pai. Deve ser algum erro do cartório. Desconfio, mas ao certo não sei. Meus pais conversavam muito em espanhol, acho que é por isso que até hoje eu guardo comigo algumas expressões em espanhol, que às vezes eu falo, principalmente alguns ditados, frases de sabedoria deles. Minha avó Ana Cortez Perez veio de Murci.

-Meu pai, Francisco Cortez Perez, tinha cinco anos de idade quando chegou no Brasil. Minha mãe, Maria Salvadora Anastácia Sanches Sanches Cortez Perez, veio depois de meu pai. Ela era um ano mais nova que ele. Ela tinha dez anos de idade quando desembarcou no Brasil. Nasceu na Espanha no dia dois de fevereiro de 1902, em Murci. Meus avós maternos eram primos irmãos, por este motivo colocam no sobrenome Sanches Sanches. Seus pais, meus avós maternos, eram Alonso Sanches e Brasilina Sanches. Chegou no Brasil no 1912. Tinha três irmãos, meus tios: Antônio, João, Pedro e uma irmã chamada Izabel. Vieram crianças ainda. Também foram para a região da estrada de ferro linha Mogiana em Santa Rita do Passa Quatro e São Simão. Santa Rita do Passa Quatro ficava perto de São Simão, Porto Ferreira, Santa Cruz das Palmeiras, Santa Rosa de Viterbo, Luís Antônio, Descalvado e Tambaú. São Simão ficava perto de Santa Rosa de Viterbo, Cajuru, Serra Azul, Cravinhos, Luís Antônio e Santa Rita do Passa Quatro.

-Meu pai nos contava que a viagem durou dezenove dias e dezenove noites. Que era um navio de terceira classe cheio de imigrantes. Que havia baile dentro do navio para passar o tempo, dançavam muito, que tinha muito vinho no navio e quando sobrava jogavam o vinho no mar, que quando morriam alguém o corpo era jogado no mar. Desceram no Porto de Santos. Que de lá foram de trem da Mogiana para o interior do estado de São Paulo, região de Santa Rita do Passa Quatro e São Simão tocar café. Foram pela linha Araraguara, trabalhar de colono na lavoura de café. Não ficava muito longe de Ribeirão Preto. Meu pai tinha dois irmãos e uma irmã, Jacinto, José e Remédio. Meus avós maternos, Alonso Sanches e Brasilina Sanches, vieram fugindo da guerra. É que meu tio Antônio estava com dezoito anos e estava na idade de servir o exército da Espanha, era idade do serviço militar obrigatório, ai ficou com medo de ter que servir e ir para a guerra ele fugiu para o Brasil. Lá eles iam pegar meu tio. Ai, com medo de pegar ele, vieram embora. Ia pegar meu tio lá, a ai, ele fugiu para o Brasil. Meu pai, Francisco Cortez Perez e minha mãe Maria Salvadora Sanches Sanches Peres, se conheceram numa colônia onde as famílias trabalhavam juntas. De lá meu pai foi para São Simão. Ele foi picado por uma cobra urutu/cruzeiro, aquela que mata ou aleija, mas ficou bom. Foi para casa ai vinha vindo o fazendeirão com sua charanga, ele tinha dentro do carro vacinas contra picadas de cobras, meu pai tomou a vacina e ficou bom. Ele era um boi para trabalhar. O trabalho era só café de colono. Quando fomos para Quatá pegamos um sítio abandonado, era uma paiadona, meu tio arrumou uma turma de homens, fizemos um mutirão, limpamos tudo, ai falavam admirados "nossa eles são trabalhador". Passamos por vários lugares, lembro que fomos de trem Mogiana linha Araraquara, eu era criança, tinha apenas quatro anos de idade, mas lembro bem, paramos em Campinas, estava um frio danado na estação de trem, era no mês de setembro. Era uma lavoura ao lado de Quatá, mês de setembro, era tudo na enxada. De lá passamos por vários sítios, mudávamos muito. Trabalhamos também na Fazenda Fundão. Lembro que levamos uma égua no trem. Lembro que fizemos uma baldeação em numa estação e um homem gritava: "Tirapina, Tirapina, Tirapina..", eu tinha apenas quatro anos de idade, mas lembro. Nós vínhamos num trem de mudança para um outro sítio ao lado de Quatá para limpar tudo e fazer plantação, tudo na enxada. Era mês de setembro de 1942. Passamos por vários sítios, entre eles do Pedro Estefanello. Lembro, eu já era frangote, mocinho, tinha um mineiro que veio de Minas e queria pôr uma banca em São José do Rio Preto, mas ele não sabia fazer contas, ai ele me pediu se eu podia ensinar ele a fazer contas, eu era menino, eu ensinei, eu era bom de conta, ele me chamava de professor. Ele nunca mais esqueceu de mim, sempre que encontrava meu irmão Afonso, ele perguntava a meu respeito.

-O trabalho era no café de colono. Trabalhávamos de colono no café. Era na enxada e cuidar do café. Pegamos nove mil pés de café para tocar. Era cada pé de café enorme, parecia um pé de laranja de tão grande que era, tinha que usar até escada para cuidar na ponteira do pé de café. Tinha uma saia enorme. Era lindo de ver. Nós recebíamos pelo trabalho na lavoura de café por salário, era um salarinho e no final do ano fazia o acerto geral, ai recebia um pouco mais. A roça branca, milho, arroz, feijão, amendoim, era comissão. Nas plantações no meio do café, aqueles cordões nas ruas de café, não pagava nada, era toda nossa. Nós mudávamos muito de um lugar para o outro, foram tantos os lugares que moramos que às vezes até não lembro direito de todos. Às vezes, ficávamos um, dois anos, num lugar e já mudávamos para outro, sempre no interior do estado de São Paulo. Passamos cada uma! Uma vez meu pai pegou um café, ai deu uma geada muito forte e perdemos tudo, ai fomos para outro lugar plantar algodão. Mas meu pai ficou devendo lá na venda e não conseguiu pagar naquele momento. Era longe, muito, muito longe, mas meu pai mesmo assim quando ganhou o dinheiro pegou o trem e voltou lá para acertar a dívida com o vendeiro. Veja como os homens daquele tempo eram, tinham palavra dada. Ele fez questão de acerta a dívida que tinha ficado para traz. O meu Irmão José Cortez chegou até a ter uma olaria, pequena. Eu era sócio dele na olaria, mas quem cuidava mesmo era o Zé, eu trabalhava mais no café, na roça. Ele misturava pó de mico com barro, dava uns tijolos bonitos, resistente. Mas veio o governo militar, com o golpe militar de trinta de março de 1964, ai a coisa piorou muito, o primeiro general Humberto Castelo Branco aumentou em quinze por cento os impostos, ai não deu mais para tocar a olaria, fechamos.

-Eu tive doze irmãos, mais dois não conheci. Eram os dois primeiros filhos dos meus pais.Tinha uma menina linda, ela só falava espanhol. Ela tinha quatro anos de idade. Um dia ela estava com uma gripezinha, minha mãe estava fazendo um chá no fogão a lenha e foi arrumar a cama, a menina ficou sozinha na cozinha e subiu num banquinha, subiu não fogão e pegou o canecão com a água do chá, a água do chá fervendo caiu em cima dela, queimou a boca do estômago. Levou ela numa farmácia a dez ou doze quilômetros dali, tomou uns remedinhos, mas pegou tétano e morreu. Naquele tempo era assim. Tudo era muito longe. Ela falava de tudo em espanhol. Ou outro irmão meu morreu do mal do sétimo dia, da doença branca. Era uma doença no umbigo, teve tétano e morreu. Meus irmãos eram: José, o Afonso, o Pedro, eu Paulo, quatro homens e cinco mulheres: Ana(Nica), Izabel, Iolanda, Mercedes, Emília e Tereza.

-A minha juventude foi muito boa. Eu lembro dos bailes. Nós tacávamos bailes todo sábado. Meu pai era sanfoneiro, ele gostava. Ele tinha uma oito baixo e tocava com satisfação, com alegria. Ele tinha uma úlcera no estômago e tomava carbonato, pegava com a mão e jogava na boca, teve úlcera durante vinte anos, para tentar passar a dor no estômago. Lembro que ele chegava do trabalho na lavoura já de tardinha, com dor no estômago, pegava a sua oito baixo, ele tocava a oito baixos, sentava no terreiro e tocava, a vizinhança, as moças, escutava de longe e vinha chegando de mansinho, devagar, com respeito e se reunia entorno dele com a sanfona, formava um bailinho, ele tocava contente. Ele era um artista, era arte, era bonito de ver, mas acho que era para espantar a dor também que ele tocava. Eu, o Zé meu irmão, o Flazio, irmão do José Passete e alguns amigos, íamos de bicicleta ou a pé a procura de bailes pelos sítios da redondeza todo sábado e encontrava. Eu comecei a tocar bailes na oito baixos, eu aprendi a tocar na oito baixos com o meu pai, depois comecei a toca numa oitenta baixos, a tocar sozinho. Eu e o Zé meu irmão tocávamos juntos. Era uma sanfona, um triângulo e um pandeiro, às vezes um violão. Era uns bailão varava à noite até o sol nascer. De madrugada, o dono da casa, chamava os tocadores até à cozinha e servia comida, frango assado, para eles, vinho e cerveja também. Teve uma vez que meu pai me pegou para tocar um baile, mas eu sempre tocava junto com meu irmão Zé, ele queria que eu fosse com ele aquela noite, toquei bandeiro com ele, ele quis me levar com ele, mas tinha uma gatinha que eu estava interessado lá no baile que Zé ia tocar, mas não teve jeito tive que ir com meu pai, como que eu ia desobedecer ele, de jeito nenhum, nem pensar. Fui. Toquei bandeiro a noite inteira, até amanhecer o dia. Uma vez eu e o Zé meu irmão vínhamos vindo bem de madrugada, os dois montado a cavalo, depois de tocar um baile a noite inteira, estávamos passando num lugar chamado Cipó Torto, era um boteco, uma igrejinha e uma venda, eu era mais novo que o Zé. Ele tinha uma égua, ela sempre que passava por ai queria parar um pouco, não passava sem parar, entortava a cabeça e ia, depois de parar um pouco ela ia embora, tinha esta mania, depois ia embora, mas tinha que dar um paradinha. Ai paramos, ficamos montados no cavalo atrás de um toco, meio escondidos, escutamos uma música, de longe ficamos escutando, ai devagar, sem fazer barulho se aproximamos mais um pouco para tentar escutar melhor e ver. Vimos dois homens dançando, tocava a viola pulando, caia e levantava, eles estavam de tamancos, pulavam, um dava rasteira no outro, depois rolavam no chão, levantava de novo e continuavam dançando, repetindo a dança, era um catira. Bonito. Não esqueço. Era uma noite de lua cheia. Acho que esse gosto e dom que tenho de fazer, de improvisar poesia que tenho eu peguei de meu pai e de tudo que vivi ali naquele mundo livre e de sonho, de tocador de baile, no meio da roça que nós vivíamos. Acho que foi.

-Eu conhecia a Maria na fazenda do fazendeiro conhecido como doutor Arroio, perto de São José do Rio Preto, quando nossos pais foram tocar café de colono na mesma fazenda, fomos tocar café juntos. O fazendeiro era chamado de Doutor Arroio porque ele era médico em São José do Rio Preto. Foi a primeira vez que vi Maria. A família de Maria mudou-se para uma vila chamada Lourdes, ficava longe de onde nós morávamos, ficava perto da cidade de Buritama. Ficamos só um ano ali. Depois mudamos para a Fazenda Rancho Alegre, que muitos chamavam de Fazenda Fundão, mas era a mesma fazenda, acho que Fazenda Fundação era só um apelido. A Rancho Alegre ficava a nove quilômetros do patrimônio chamado Zacarias, que se chamava ainda de Vicente Nópolis, onde tempos depois a família de Maria também foi morar. Aquilo que tem que ser tem muita força. Naquele tempo as famílias costumavam se visitar à noite. Eu dava umas olhadelas nela, de rabo de olho. Nós tinha amizade. Depois que nós mudamos para a Fazenda Rancho Alegre/Fazenda Fundão ai começamos a namorar. Depois eu esperei o Zé casar, com a Antônia, que era irmã da Maria, dois irmãos casaram-se com duas irmãs e ai casei com a Maria. Na verdade, eu conheci Maria num baile na casa de um senhor chamado João Português. Era a chamada Fazenda dos Portugueses do João Batista Ramos, era uma colônia lá no Fundão. Quem tocava o baile era o meu pai, tocava uma sanfona oito baixos, como eu iria esquecer?! Casei no dia doze de novembro de 1961 em Nova Luzitânia. Nova Luzitânia ficava perto de Gastão Vidigal, Santo Antônio do Aracanguá, Lourdes e Nova Castilho. A fazenda Fundão ficava no município de São João de Nhandeara. São de Nhandeara ficava perto de Monte Aprazível, Gastão Vidigal, Floreal, Votuporanga, Monções, Macaubal e Sebastianópolis do Sul. Eu tinha vinte e dois anos e a Maria tinha vinte e um de idade. A festa foi simples. Tinha um garajão, onde guardava o caminhão, a festa foi ali mesmo. Tudo muito simples. As comidas foram nós mesmos que fizemos. Fui morar ali mesmo na colônia, ali perto, na Fazenda Rancho Alegre, tive meus quatro filhos ali. O quarto da casa a porta só tinha uma cortina, ai eu fiz uma boa porta de madeira e fiz um colchão de taboa, que fui busca no brejo ali perto. Tive quatro filhos ali. Dois meninos e duas meninas. A Maria era uma moça muito bonita, cabelos pretos, olhos pretos grandes, estatura mediana, calma, trabalhava muito. Ela sempre foi muito boa para mim. Fui muito feliz com ela. Ela era só trabalho e amor. Cuidar da família e dos netos e da neta, só pensava nisso, era a vida dela. Naquele tempo, já em Maringá, no final do ano, nós íamos nas lojas comprar roupas para as crianças, na loja Riachuelo ou na Pernambucana, comprar roupas e na loja Genko comprar calçados, mas ela não queria comprar nada para ela, dava o que fazer para ela comprar alguma coisa para ela. Ela gostava de ir também na loja Polovar, que vendia de tudo para a cozinha. Ela era assim. Só pensava na família, nos filhos, ela era totalmente e desprendida, sem vaidade. Eu vim do sítio comprei um fogãozinho, um sofá simples, ela não reclamava de nada, nunca reclamou, nunca pediu alguma coisa para ela. Eu perdi a Maria muito cedo. Ela foi embora muito cedo, no dia dezenove de maio do ano de 1995, era uma sexta-feira ensolarada do mês de maio em Maringá, ela tinha apenas cinquenta e seis anos de idade. Sua presença ainda é muito forte. Faz muita falta.

-Os pais da Maria eram o João Teodoro e a mãe Conceição Fernandes Teodoro. Eles tiveram muitos filhos, mas morreram quase todos, só restou a Antônia e a Maria. O meu irmão José Cortez casou com Antônia e eu casei com Maria. Tanto João, como Conceição, eram espanhóis.

-Para Maringá viemos da Barraca, Fazenda Fundão/Rancho Alegre. Na verdade, a Fazenda Fundão e a Rancho Alegre é a mesma, era só o jeito de falar, cada um fala de um jeito. Era perto de Birigui e Araçatuba. Corria o ano de 1967.  Cheguei em Maringá no dia sete de agosto de 1967. Era meio dia, de um dia ensolarado, o céu estava meio esfumaçado, como costumava ser o mês de agosto. Fui direto para a casa de minha irmã Izabel na rua São João na Zona Sete da cidade. Maringá era pequena ainda, tinha um pouco mais de cem mil habitantes, mas a maioria morava ainda na área rural do município, na cidade mesmo morava mais ou menos cinquenta mil pessoas, estava com vinte anos de emancipação, lembro que o prefeito era o médico Luiz Moreira de Carvalho, era o quarto prefeito da cidade. Estava muito difícil lá, eu precisava dar uma vida melhor para meus quatro filhos, precisava estudar eles. Lá não dava mais. Aluguei um caminhãozinho, colocamos a pouca mudança na carroceria e viemos. Na verdade, eu vim antes um pouco para a cidade Maringá/Pr, aluguei um caminhãozinho, fui buscar a família e a mudanças lá na Fazenda Rancho Alegre/Fundão. Meu irmão José Cortez já tinha vindo para Maringá e eu tinha parentes já morando na cidade. Foi uma viagem demorada. A estrada era quase todo de terra batida. O motorista vinha devagar. Quando chegamos na cidade de Pirapozinho/SP já era noite. O motorista me disse que de noite ele não viajava. Ai pousamos num hotelzinho. A Zenaide, minha filha caçula, ela era bem novinha ainda, tinha apenas oito meses de idade, estava com uma infecção no intestino, com um febrão, chorou a noite inteira, tadinha. Chegamos em Maringá já era quase meio dia. Ai a minha irmã Izabel nos acolheu. Fui morar numa casa de aluguel no Jardim Alvorada, morrei dois meses nesta casa, depois fui pagar aluguel numa casa também no Jardim Alvorada, mas  a casa era da minha irmã Izabel. Não tinha luz nem água ainda. Maringá era bem pequena, não tinha quase asfalto nas ruas, era tudo terra vermelha. Cheguei em Maringá, comprei uma égua velha lá em Sarandi. Sarandi era só cafezal e comprei também um carrinho ruim velho e fui lá no Maringá velho numa pequena padaria chamada Padaria Maringá que existia ali, o homem era conhecido por serviço, não sei porque. Combinei com ele de pegar pão ali e pagar mensal para ele, ele concordou, mas toda semana eu pagava. Eu pagava a jarra, o bule, o pote. Colocava o meu dinheiro, em casa, separado, para saber de onde eu ia tirar para pagar cada coisa, eu me organizava assim. Ai pedi para ele me registrar, o dono da panificadora me registrou em carteira, CLT. Trabalhei dois anos ali, pegando pão desta padaria lá no Maringá velho. Foi ali que tudo começou. Um dia a égua caiu e eu caí também junto com ela, quebrei o cotovelo. Tive que sacrificar a égua. Depois comprei uma égua bonita gorda, esperta e um carrinho de pneu de jeep, tinha muito barro em Maringá. Quando quebrei o cotovelo contratei um rapaz para me ajudar, mas ele era muito ruim de serviço, tive que mandar ele embora, ai eu ia sozinho, eu descia e abria o carinho com o pé, era um sacrifício, mas parece que quando a gente acredita e faz, as coisa melhoram, a minha freguesia foi aumentando. Depois a outra égua também sofreu um acidente na rua Dez de Maio e teve que ser sacrificada. Era uma égua boa. Trabalhei nove anos com carinho. Comecei a levar os meninos comigo, eram pequenos ainda, mas já ajudava. Eles estudavam à noite e de dia me ajudavam na entrega do pão pelas ruas de Maringá. Eu tinha muitos clientes. Ai, comprei uma Kombi, velha que só ficava quebrando, eu não saia da oficina dos Irmãos Mayer, que ficava ali na Avenida Mauá, na Vila Operária. Eles eram especializados em serviços e peças da Volkswagen. Essa oficina foi inaugurada no ano de 1967, ano que cheguei em Maringá. Era muita despesas. Depois meu sobrinho, Donizete Cortez Mião, filho da minha irmã Izabel Cortez e do meu cunhado Domingos Mião, ele trabalhava na empresa de ônibus Expresso Maringá, era gente lá, ele ficou sabendo e me ofereceu uma Kombi nova que um cliente tinha acabado de comprar e tinha devolvido lá na concessionária da volkswagen. Eu fui lá e comprei em doze parcelas, eu pagava adiantado. Ai sim melhorou muito, a Kombi era nova e não dava oficina. Com a Kombi fiquei seis anos. Surgiu uma oportunidade de comprar uma padaria na Avenida Morangueira. O dono queria vender e me ofereceu. A minha irmã Izabel queria comprar comigo, ser minha sócia na padaria. Mas eu estava doente, sem saúde, sem condições de saúde, não dava para mim naquele momento.

-Eu estava pagando aluguel para o meu cunhado Domingos Mião. Ai, depois de um tempo, o Domingos Mião morreu, a minha irmã Izabel tinha uma data lá no Jardim Alvorada, na Avenida Dr. Alexandre Rasgulaeff, ela queria vender, me pediu para vender para ela, procurei oferecer a data dela para vender, mas estava muito difícil de achar um comprador, ai eu tinha um pouco de dinheiro guardado, das minha economias. Eu vim do estado de São Paulo com 120 cruzeiros, paguei uns meses de aluguel, com quatro meninos pequenos para criar, a minha irmã Tereza morando comigo e minha mãe também estava morando comigo, já bem de idade, tinha quebrado a bacia lá em São Paulo e estava se recuperando. Imagina a situação! Mas com meu trabalho na venda do pão tinha conseguido guardar um pouco de dinheiro. Ai falei para a Izabel se ela não queria vender a data dela para mim, porque ela tinha pedido para ver se eu achava algum comprador, mas não estava encontrando. Ai ela me disse:

-Por que você não me disse antes?

-Mas você tem mesmo esse dinheiro para comprar a data?!, continuou Izabel.

Eu falei:

 -Tenho um pouco, não tudo.

-Ela me perguntou quanto você tem?

Eu falei. Ela falou:

-A data é sua então.

-Ai dei o que tinha e logo paguei o resto para ela. Era uma data grande na Avenida Dr. Alexandre Rasgulaeff, no Jardim Alvorada. Não tinha asfalto ainda no Alvorada. Depois eu fui no Depósito Alvorada na Avenida Pedro Taques e eles me venderam o material todo parcelado, para eu ir pagando aos poucos. Peguei todo o material para a construção da casa lá. Arrumei um carpinteiro, ele estava devendo muito pão para mim, ai fiz a proposta de ele fazer a casa em troca da dívida que ele tinha comigo. Aceitou. Eu dei para ele também uma bicicleta que tinha, mas ele logo me devolveu, não quis ficar com a minha bicicleta. Fiz uma casa simples, de madeira, sem foro, não tinha luz, nem água ainda na casa, era um barão danado quando chovia e um poeirão quando estava seco. Com o tempo instalei luz elétrica e água da Codemar. Deixei de pagar aluguel.

-Fiquei um bom tempo morando nesta casa da Dr. Alexandre, no Jardim Alvorada. Depois, eu estava precisando de dinheiro, ai saiu no ano de 1979, um novo conjunto habitacional, o conjunto de casa populares do BNH/COHAPAR, Hermann Moraes Barros, eu consegui o direito de uma casa, ai mudei para o Hermann Moraes Barros no ano de 1982. Estava tudo começando, na Avenida Kakogawa não tinha asfalto, era um barro só no tempo das chuvas, ou poeira vermelha na seca. Quando chovia muito tinha que acorrenta a Kombi. A casa era pequena, aos pouco fui aumentando ela. Ficava na Avenida São Judas Tadeu, em frente ao um colégio estadual que começou a ser construído logo que cheguei. Tudo foi melhorando ali. O José Cortez meu irmão trabalhava na Viação Garcia de motorista de ônibus, mas quis mudar com a família para São Paulo Capital, queria que eu mudasse para São Paulo com ele. Eu falei para mim não dá. Ele foi, mas logo voltou. Chegou até morar comigo por uns tempos, mas foi por pouco tempo. Depois deixei de vender pão e fui trabalhar com taxi. O meu primeiro ponto foi na Avenida São Paulo, quase esquina com a Avenida Colombo, foi o Zé meu irmão que me arrumou. Comprei um opala usado logo ele fundiu o motor, tive de retificar o motor do carro. Logo vendi o ponto ali e comprei um ponto na rodoviária, no centro de Maringá. O meu irmão José Cortez trabalhava comigo de motorista. Comprei um corcel novo. No ponto da rodoviária fiquei onze mês. Um dia ele foi assaltado, quase mataram ele. Depois de uns dias eu encontrei o carro abandonado na rua Iguaçu, na Vila Esperança. Quantas lutas! Depois peguei úlcera. Tive que operar. Peguei hepatite, quase morri, tive que refazer a cirurgia. Depois que o José meu irmão foi assaltado eu vendi o ponto que eu tinha na rodoviária de Maringá e comprei um outro ponto no Aeroporto de Maringá, que ficava lá no Bairro Aeroporto. Fiquei trinta anos trabalhando com táxi, quinze anos no aeroporto velho. Depois mudei para o aeroporto novo quando foi inaugurado no ano de 2001. Terminei ai. Fui também tesoureiro da Igreja São Judas Tadeu por muitos anos. Passei também por alguns momentos muito difícil, por causa da minha saúde. Tive uma úlcera no estômago. Não teve jeito tive que operar. Quem me operou foi o Doutor Said Felício Ferreira no hospital São Marcos em Maringá, hospital que era do doutor Said. O doutor Said Felício Ferreira depois de passado um bom tempo foi prefeito de Maringá. Sofri muito, quase morri, fiquei muito fraco. Depois tive que refazer a cirurgia. Que luta! Mas no fim fiquei bom. Superei tudo. A vida da gente é uma luta. Só não podemos deixar de acreditar e lutar sempre.

-Eu estudei até a terceira série em São Paulo. Ia para a escola era longe, andava no meio de um areião quente pisava sobre os pés de bertuega verde para aguentar e esfriar o pé da areia quente do sol. Voltava da escola ia para roça puxar enxada. Quando cheguei em Maringá eu voltei a estudar. Eu me matriculei no curso supletivo à noite no Colégio Estadual Rodrigues Alves, depois eu passei e fui para o Colégio Estadual Vital Brasil. Mas chegou um ponto que eu não aguentei mais. Eu ia para a escola à noite muito cansado. Eu levantava de madrugada para vender pão, trabalhava o dia inteiro, descansava só um pouco à tarde e no outro dia tinha que levantar cedinho de novo para vender pão. A diretora do Colégio Estadual Vital Brasil não queria que eu desistisse de jeito nenhum, queria que eu continuasse, mas não dava. Tranquei a matrícula.

-Na minha vida eu passei coisas, passei muitos perrengues, a gente passa por uma coisa e outras, mas venci. Era aquela luta. Do começo ao fim eu passei muitas dificuldades, mas eu venci tudo. Eu trabalhei na minha vida.

-Que bom que você me ouviu. Desculpa se eu esqueci alguma coisa, são tantas, fica sempre alguma coisa para traz. Às vezes, contando essa história eu fui e voltei, mas a memória é assim mesmo. Gostei de contar.

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