Ponta do Iceberg
O objetivo deste artigo é colocar em pauta, com a devida profundidade e nos fóruns adequados, algumas das consequências dos serviços prestados por carroceiros* e carrinheiros**, figuras atuantes em pleno século XXI, numa metrópole global como o Rio de Janeiro. Do ponto de vista da limpeza urbana e da saúde pública é fundamental falarmos de comportamentos e práticas que tocam o coletivo.
Uma cena muito comum na cidade, sobretudo na zona oeste carioca: carroças mal conservadas, carregadas de entulhos e galhadas, tracionadas por animais aparentemente mazelentos e muitas vezes conduzidas por adultos, jovens e até crianças que se expõem aos perigos do tráfego urbano.
Estamos falando dos carroceiros, praticantes de um ofício danoso para a limpeza urbana e para o meio ambiente, sempre prontos a recolher e despejar a falta de educação de cidadãos descomprometidos com o destino de seus resíduos. Sem exageros, qualquer gerente operacional de limpeza urbana tem seu batimento cardíaco acelerado quando se depara com um carroceiro e seu veículo entupido de escombros e destroços.
Afirmo e reforço: inegável é o fato de o carroceiro ser um trabalhador, uma pessoa simples que labuta de maneira admirável, pois ganha o sal com seu suor, de forma honesta.
Uma coisa é certa, entretanto: a maioria esmagadora dos clientes que utilizam os préstimos dos carroceiros ou carrinheiros não faz a mínima ideia de onde será descartado o entulho. Pior: às vezes sabem que o destino será inadequado, mas seu primeiro e único desejo é ver a tralhada desaparecer da sua frente.
Tente lembrar se isso já aconteceu alguma vez com você, caro leitor. Tudo orçado, projeto com infra-estrutura elétrica, hidráulica, piso, marcenaria, engenheiro, arquiteto, design interior, pedreiro, ajudante, mestre de obras, mestre-sala, porta-bandeira e... nada, nenhum centavo separado para o destino final dos resíduos da construção civil.
Caríssimos e caríssimas, quando você faz uma obra, com projeto executivo ou não, você produz um despojo... que é seu! O destino correto do resíduo é responsabilidade sua!
A boa notícia que é a companhia de limpeza urbana pode retirar este resíduo gratuitamente para você. Como representante do poder público, tem regras próprias referentes à quantidade e ao prazo. E este parece ser um ponto de incômodo aos solicitantes.
A muitos parece mais prático acionar o carroceiro das redondezas. Nada mais bacana, pensam alguns, do que dar uma graninha para o freela do entulho, que pega aqui e joga lá, bem longe das vistas! Percebam que atitude amável: além de desaparecer com a tralha, ainda ajudam um brasileiro batalhador a ganhar o pão de cada dia. Sem qualquer dor na consciência, o “isentão” fica todo prosa, achando que vai direto para o céu (sem passar pelo purgatório) por ter feito uma boa ação!
Só que não! Trata-se de uma desculpa esfarrapada para tentar baratear e tornar mais prático e rápido o que lhe parece uma boa solução.
Despejos indevidos em locais públicos levam à degradação do ambiente. Tudo começa com umas bolsinhas de lixo, depois um vaso sanitário, daqui a pouco uma galhada acompanhada de sacos de entulho ou a granel. A história se repete todos os dias, em diferentes cantos da cidade. No fim das contas, o espaço fica conhecido, no jargão técnico, como ponto crítico.
Aquela praça, aquele canteiro, terreno, muro, calçada, enfim, o ponto escolhido para o descarte descabido passa a ser um endereço oficial de restos. E a companhia de limpeza, comprometida com sua missão, não pode deixar de remover o lixo descartado inconsequentemente por alguns “iluminados”.
É o óbvio ululante, diria Nelson Rodrigues! Lixo é para ser descartado no lugar certo. Os resíduos que produzimos demonstram quem somos. E isso também não é exagero!
A escolha por descartar indevidamente é uma questão de foro íntimo, mas neste individualismo reside a semente do mal para o coletivo. Onde fica nossa responsabilidade sócio-ambiental?
Quando a ponta do iceberg aparece, suscitam reflexões: De quem é a culpa? É do carroceiro? É do indecoroso que o contratou? Os dois são cúmplices?
São muitos os stakeholders quando o assunto é lixo urbano: Meio Ambiente, Assistência Social, Superintendência e Administração Regional, Zoonose, DETRAN, Associações Comerciais, Associações de Moradores, Síndicos e/ou Administradores de condomínios. Todas estas são chaves para o bom tratamento da questão.
Falta, a meu ver, uma espécie de “lei das doze tábuas” para o assunto! Carecemos de legislação específica que torne a fiscalização mais eficaz. Temos a 3.273/01, por exemplo, que menciona alguns aspectos sobre penalidades de despejos indevidos, mas tem algumas complexidades a serem mais detalhadas. A 9.605/98 versa sobre crimes ambientais, mas é genérica demais para o que nos interessa aqui. Há também a 10.531/08, que tem seus acertos e méritos e poderia servir de base para criação de uma legislação mais assertiva e eficaz. Está aí a dica, legislador!
Enquanto nossa miopia só enxergar o cocoruto do iceberg, continuaremos navegando no mar gelado da teoria.
*CARROCEIRO - Veículo de Tração Animal – VTA´s
** CARRINHEIRO - Veículos de Tração Humana – VTH´s