Thieli Fonseca

Peço licença para me apresentar, sou Thieli, mulher preta nascida e criada na região da Grande São Paulo (cidade de Caieiras, sendo mais específica), 24 anos de idade e um bocado de vivências para compartilhar.

Acho importante começar pelo início de tudo. Filha de mãe solo, minhas raízes são humildes, porém fortes (uma característica comum entre as pessoas pobres e pretas desse imenso Brasil). Cheguei ao mundo quando minha mãe tinha apenas 17 anos, naquela época, uma adolescente que teve que se desdobrar e descobrir sozinha como criar a mim e meu irmão, que nasceu 6 anos depois.

Dado todo esse contexo, precisei assumir grandes responsabilidades desde muito nova. Não muito diferente da realidade de muitas meninas pretas, aos 12 anos, eu já me via responsável pelos cuidados da casa e do meu irmão, enquanto nossa mãe trabalhava. Isso, é claro, além do compromisso com os estudos (boa nerd que sou, estudar sempre foi uma paixão).

Aos 14 anos comecei no meu primeiro emprego: Jovem Aprendiz em uma multinacional, uma das líderes do transporte aéreo no Brasil. Durante o processo seletivo, eu era a única pessoa preta e, no meu departamento, também a única mulher. A experiência como um todo foi profissionalmente muito positiva, mas ao mesmo tempo, caracterizava um lugar de grande solidão. A rotina era intensa, trabalho ao longo do dia, ensino médio à noite e cursinho pré-vestibular aos finais de semana (essa menina não descansa? onde é que se encaixa o lazer?).

Nessa vida já fiz de tudo um pouco, mas sempre me vi voltada para o mundo da arte. Grande amante da música, já fiz parte de uma banda como vocalista e cantei em barzinho. Além disso, fui instrutora de música (a preta aqui também já tocou trombone). Nessa mesma época, fiz alguns freelas como modelo de cabelo, maquiagem e fotografia. Inclusive, até mesmo de comercial de marca de roupas eu já participei (acredite se quiser rs).

Aos 18 anos, iniciei a faculdade de Arquitetura. Defensora assídua das políticas públicas, ingressei em uma universidade privada através do Prouni, como bolsista integral (o cursinho deu certo, família!). Ao longo dos 3 semestres que completei nesse curso, sempre me vinha o questionamento: será mesmo através dessa profissão que conseguirei transformar a vida de pessoas como eu? Talvez até fosse, mas na dúvida, busquei por um caminho que me parecia mais conectado com esse propósito. Foi então que escolhi a Psicologia.

Um novo processo como vestibulanda se iniciou e, aos 20 anos, fui aprovada novamente com uma bolsa integral. É difícil mensurar o quão transformador foi me encontrar num curso voltado para o cuidado da mente humana e para a reflexão sobre questões sociais, raciais e de gênero, e como elas impactam a saúde mental. Foi ali que meu estalo aconteceu e a consciência racial, antes tímida, tomou força. Ali eu passei a compreender todas as violências que desde sempre me atravessaram e o motivo de eu estar, literalmente, sempre correndo.

Apaixonada pelo mundo acadêmico, nos dois últimos anos da graduação em Psicologia me dediquei ao estudo dos desafios na formação e atuação de psicólogos pretos na psicologia brasileira. Fazer essa pesquisa me transformou tanto como profissional quanto como mulher preta, e espero em breve poder compartilhar os resultados desse estudo para além da academia (aos poucos a menina que sonhava em transformar a vida dos seus tem traçado o seu caminho nessa direção).

Hoje, meu foco permanece sendo a arte do cuidado, porém dentro do mundo corporativo. Psicóloga de formação, atualmente ocupo a posição de Analista de Recursos Humanos na maior varejista de autopeças do mundo, uma multinacional americana, com o objetivo último de promover uma abordagem mais humana e inclusiva nas organizações.

Agora, uma mulher independente que consegue desfrutar de pequenos prazeres da vida, como momentos de lazer e descanso (hoje a gata viaja, acessa lugares antes inimagináveis e até tem o luxo de fazer vários nada rs). A vida permanece corrida, mas diferente dos anos anteriores, aos poucos os frutos do meu esforço e dedicação têm sido colhidos.

Ciente de que faço parte de uma bolha, permaneço na luta para que as futuras Thielis não tenham que enfrentar tantos obstáculos e abrir mão de sua infância e adolescência para ter uma vida minimamente confortável.

Encerro com um verso de Tasha (da dupla Tasha e Tracie) com o qual me identifico profundamente:

“Cresci pensando uma forma de sair da vida que armaram pra mim

Fazia as contas e não via saída

Pensava: Pra sempre não pode ser isso

Se pá, minha sina

Um ciclo, num vício”

E enfatizo que isso não foi para sempre! A mudança vem!