Um amigo, um adeus
Era pandemia e a crise gritava à porta. Para cada ouvido, a voz soava peculiar, diferente, embora a personagem fosse a mesma: a crise humanitária. A crise humanitária do toque, do gesto, ainda que de longe. A crise que devorava a sede da energia vital humana como no mito de Prometeu.
A figura aquilina desse titã muito se assemelha àquela visita inesperada que se avizinha mesmo que não nos demos conta: a sombra do distanciamento social. Mário Quintana contemplaria, demoradamente, seu relógio, notando a crueza com que cuidamos do tempo, das pessoas, de nossa alma.
Ao contrário dele, deixaríamos passar 30 mil anos sem que se pudesse notar que cada um de nós abriu a sua caixa de Pandora, atentos apenas às nossas dores, à nossa psique, ao eu, “miserável que sou”, ou à tola discordância de ser de um lado e opor-se ao que pensa diferente pelo mísero prazer de ser.
E ostentar o lábaro de todos os seus orgulhos de adjetivações, enquanto a bandeira a se erigir deva ser a da empatia, da tolerância apregoada por profetas, filósofos, pelos semeadores da paz. Aliás, para que serviria o Nobel se não para evidenciar o que realmente importa, até para o discurso da Miss Universo?
Cabeças foram degoladas em nome da paz, vozes erguidas sobre palanques para inflamar multidões, o átomo foi dividido, livros proibidos foram luz para a humanidade e muitos outros etc.
Eu sei, eu sei… a minha divagação soa até filosófica, mas esse pretérito tão recente fica ali ecoando em mim quando observo o relógio da vida e noto a perda de tempo com a dor, em nutrir a dor com a autocomiseração, em se deixar aflorar o que deveria permanecer na caixa de Pandora a salvo de nós mesmos.
E penso nas despedidas desses tantos que fizeram parte da estatística. A cada dia alguém chora a dor daquele corpo inerte sem vida de quem um dia foi abraço, apreço, foi amor.
Hoje, nesse pretérito recente de distâncias, sou eu quem navega pela memória para assistir ao filme que dividi com um grande e querido amigo, o qual, como eu, manteve a esperança diante da dor, da perda, manteve o sorriso mesmo diante da tela e da dor da distância.
Quando o corpo permanece inerte naquele ataúde, os anos tornam-se segundos, minutos de lágrimas vertendo como nascente. E o impositivo distanciamento social obriga a quem ama a imaginar a cerimônia da despedida, a erguer a sua prece como lamento pela inexistência do último e derradeiro adeus.
Quem fica é reticência, é saudade, é memória. Quem fica permanece no último suspiro. Quem fica teve de se acostumar à lágrima, à inexistência, mesmo com a esperança no Cristo vivo. Quem fica rememora, folheia o livro da vida e encharca de saudade a página da existência em comum.
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Noto, verdadeiramente, que as despedidas são flertes com a pessoa que fomos, afinal, nas relações deixa-se um pouco de si e leva-se do nós. Verdade eternizada pela raposa muito sagaz, cujas palavras ensinaram ao principezinho que cativar trata-se de uma conquista diária.
E tal verdade esteve presente nos últimos 17 anos enquanto pude experimentar a amizade do seu Daniel, cujas histórias, ao redor da mesa, ensinaram-me a viver com mais doçura, a permanecer na fé, a conhecer as pessoas mergulhando em suas almas, a jamais ficar à margem, a estar, ser e permanecer para quem ouviu a voz do coração.
As lágrimas foram muitas enquanto vivenciava do primeiro ao nosso último encontro (em vídeo) no feriado, e a saudade, nesse último 11 de outubro com a sua partida, ganhou novo significado: Daniel.
Este texto faz parte de um projeto maior: o amor à palavra. Foi ela quem me salvou de uma infância introspectiva e silenciosa. Até ser uma jovem falante e ouvinte na mesma proporção, sempre embalada a café e companhia. Gostou do texto? Você tem permissão para compartilhar, enviar a um amigo, comentar e dizer se quem escreve está no caminho.
Tenho, como autora, na palavra: minha ferramenta e meu ar. Escrevo da mesma forma que respiro e vivo, profissionalmente, há 16 anos. Formada em Letras por amor à língua, o qual me aproximou do universo da comunicação e do Marketing. Amante da boa escrita, do saber, da leitura e da pesquisa.
Autora publicada em blogs: próprio e alheios, poeta premiada em antologia poética, prefaciadora em livro de poesia e de ficção; redatora de textos alheios e próprios; contista que capta o cotidiano e as minúcias despercebidas; revisora de textos técnicos, acadêmicos, líricos, poéticos, de periódicos, editoriais, livros, sites, blogs...
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