A Coca, o Uber, as corretoras e os bancos
Você sabia que uma coletiva de imprensa no Brasil já contribuiu com a queda de um CEO global da Coca-Cola? Na ocasião, Douglas Ivester foi questionado sobre testes que a fabricante de refrigerantes estava fazendo de máquinas que mudavam o preço de forma dinâmica.
Ivester respondeu assim: “A Coca-Cola é um produto cuja utilidade varia de momento em momento. Em uma final de campeonato, quando as pessoas se encontram em um estádio para se divertir, a utilidade de uma Coca-Cola gelada é muito alta. Então é justo que ela seja mais cara. A máquina simplesmente torna automático o processo".
Do ponto de vista de um livro texto de Economia, a resposta está impecável: se a demanda aumenta, é natural que o preço suba.
O impacto para a imagem da empresa, entretanto, foi muito ruim. Uma máquina de Coca-Cola apareceu em uma charge do Wall Street Journal com braços, roubando a carteira do bolso de um freguês.
No livro Misbehaving, o prêmio Nobel de Economia Richard Thaler conta que esse foi uma espécie de estopim para a renúncia do CEO, em meio à pressão de diversos membros do conselho da empresa, inclusive do megainvestidor Warren Buffett.
A importância de uma transação econômica parecer justa foi tema de estudos de Thaler em parceria com outro Nobel de Economia, Daniel Kahnemann.
E que tal a loja de ferragens que aumenta o preço das pás pra neve na manhã seguinte a uma forte nevasca? A maior parte dos alunos do MBA de administração de Thaler, 76%, acharam aceitável. Quando a pesquisa foi feita com uma amostra aleatória de pessoas por telefone, entretanto, somente 18% consideraram aceitável; o restante achou injusto.
“O fato de meus alunos de MBA considerarem aceitável aumentar os preços das pás de neve após uma nevasca deveria servir de alerta para todos os executivos, um aviso de que suas intuições acerca do que parece justo para seus clientes e empregados poderia precisar de um pouco de sintonia fina” – conclui o prêmio Nobel de Economia.
Eu não poderia concordar mais. Passando da fábrica de Coca-Cola à Faria Lima, também fico com a sensação que as percepções de justiça estão desencontradas. De um lado, vejo executivos muito seguros de seus modelos rentáveis. De outro, vejo investidores com um crescente senso de injustiça.
Cobrar caro por produtos financeiros simples, como fazem os bancos, pagar altíssimas comissões para distribuição de estruturas de qualidade duvidosa, como fazem as corretoras… nada disso é ilegal. E, sim, ainda são absurdamente lucrativos. Mas isso não deveria bastar.
“A aparência de justiça deveria ser um valor especialmente elevado para empresas que planejam vender para os mesmos clientes durante um tempo longo, uma vez que essas empresas têm mais a perder parecendo agir injustamente" – escreve Thaler.
Os lucros bilionários dos bancos e corretoras podem fazer parecer que o senso de injustiça tem importância nula. Eu fico com o sábio ditado da vovó: Água mole em pedra dura tanto bate até que fura.
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Bom lembrar que não faz pouco tempo que as corretoras arranham o império dos bancos com um forte argumento de defesa dos clientes. Hoje, a verdade é que já vejo alguns bancos mais preocupados com o senso de justiça do que corretoras – talvez porque agora entendam mais do que elas que um poder aparentemente consolidado pode sim ser abalado.
Thaler chama de “empreendedores temporários" os que não precisam se atentar à questão de justiça – eles não vão vender de novo para os mesmos clientes. Pra mim, algumas práticas de corretoras e assessores hoje fazem parecer que estão jogando esse jogo.
O prêmio Nobel diz que é razoável se questionar se as empresas sempre serão punidas por agirem de forma injusta, mas considera os “riscos consideráveis": “o vendedor precisa escolher entre um ganho de curto prazo e uma possível perda de boa vontade no longo prazo, que pode ser difícil de mensurar".
Pra mim, os executivos do mercado financeiro estão mensurando de forma incorreta os riscos crescentes para seus negócios do acirramento do conflito de interesses. De fato, não é fácil estimar o dinheiro que está deixando de entrar dada a perda de credibilidade.
Permita-me tomar mais um pouquinho do seu tempo pra um último caso: o da Uber, com seus também preços dinâmicos, que ficam mais altos de acordo com a demanda. Os elevados multiplicadores cobrados durante uma tempestade de neve em Nova York atraíram a atenção do procurador-geral do estado de Nova York, o que deu início a uma batalha por lá.
Nova York tem uma lei contra extorsão, segundo a qual as empresas estão proibidas de cobrar “preços exorbitantes inescrupulosos" durante distúrbios anormais de mercado. Depois de um embate, houve um acordo pra que a Uber limitasse o preço dinâmico. Além disso, a empresa se ofereceu pra doar 20% de suas rendas adicionais durante esses períodos para a Cruz Vermelha Americana – claramente tentando limpar sua barra.
“Penso que foi uma demonstração de mau julgamento por parte da direção da Uber esperar até que o procurador-geral os forçasse a essa concessão. Se queriam estabelecer boas relações de longo prazo com seus clientes, deveriam eles mesmos ter pensado em algo desse tipo", escreve o prêmio Nobel de Economia.
Concordo plenamente. Mas vá eu dizer que, em vez de ficar esperando (e resistindo a) os avanços da regulação para mais transparência, as corretoras e bancos deveriam tomar medidas já pra controlar os conflitos de interesse, em prol de uma relação de longo prazo mais justa com seus clientes? Vão me chamar de Sandy ou algo do tipo, como já ouvi por aí.
Resta me apegar ao otimismo de que, por estarem cada vez mais descaradas, as práticas injustas com clientes estejam mais perto de um ponto de inflexão.
Como me disse um sábio monge sobre uma das fases mais difíceis da minha vida, que culminou em viradas drásticas em nome dos meus princípios (faz exatos dois anos nesta semana, veja só!):
“Agradeça por ter sido tão duro, se fosse mais leve talvez você tivesse se acostumado”.
Um abraço,
Luciana Seabra.
Global FP&A Leader, Oilfield Equipment na Baker Hughes
6moReflexão muito importante nos dias de hoje, especialmente pensando no que está por vir em termos de tecnologia e novas possibilidades de injustiças. Admiro sua coragem de ir contra a maré.