Cultura
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Por — São Paulo

Cenário de “Água turva”, novo romance de Morgana Kretzmann, o Salto do Yucumã, maior queda d’água longitudinal do mundo, no noroeste gaúcho, despareceu da paisagem esta semana. No livro, é a construção de uma hidrelétrica que ameaça alagar o Parque do Turvo, reserva ambiental que abriga as cascatas e é o último reduto da onça-pintada no Sul do país. Na realidade, as chuvas que inundaram o estado nos últimos dias transbordaram o Rio Uruguai e submergiram o Salto do Yucumã.

— Hoje o Rio Grande do Sul inteiro é uma água turva, no sentido ambiental, político e social — lamenta Kretzmann, que nasceu em Três Passos, perto do Parque do Turvo.

“Água turva” tem três protagonistas: Olga, assessora parlamentar que denuncia o esquema de corrupção por trás da construção da hidrelétrica Gran Roncador; Chaya, guarda-florestal do Parque do Turvo; e Preta, líder de um bando de caçadores e contrabandistas que atua na fronteira argentina. Chaya e Preta são bisnetas de Serampião, curandeiro que zelava pela biodiversidade do Parque do Turvo (inclusive por uma onça mítica conhecida como Boca Braba). A região já sente o impacto das mudanças climáticas: Olga estranha o calor de 38 graus em outubro.

— Nesse livro, quis falar dos crimes ambientais e do contrabando que acontecem nessa fronteira quase esquecida do Brasil. E também sobre mulheres que se unem para proteger sua terra e têm fé não só naquilo que não veem, mas também naquilo que veem: o Turvo, o Rio Uruguai, o Yacumã — diz Kretzmann, que é formada em gestão ambiental.

O romance será editado na França e na Alemanha e foi descrito por agentes literários europeus como um “thriller ecológico” — o mesmo rótulo colado em “Sobre os ossos dos mortos” (2017), da polonesa Olga Tokarczuk, Nobel de Literatura. “Água turva” se destaca em meio a uma safra de títulos recentes que abordam a crise ecológica, como “Contra fogo”, de Pablo L. C. Casella, protagonizado por uma brigada voluntária de combate a incêndios na Chapada Diamantina, e “Deslumbramento”, do americano Richard Powers, no qual Robin, um menino autista de 9 anos protesta em frente ao prédio do Poder Legislativo do estado de Wisconsin, nos EUA, com um cartaz onde se lê “Socorro estou morrendo”.

O garoto está bem. Ele se refere às espécies ameaçadas de extinção retratadas no cartaz. Robin se torna um militante após ver na TV que a menina suíça Inga Alder (inspirada na sueca Greta Thunberg) não vai mais à escola e convoca crianças para protestar contra a inação dos governos diante da emergência climática. Ele vende desenhos de animais em perigo para arrecadar dinheiro para a proteção da vida selvagem.

A onda de livros preocupados com a crise ecológica já tem nome: ficção climática. Inicialmente, a etiqueta parecia indicar mais um subgênero da literatura fantástica. Em 2017, no ensaio “O grande desatino” (lançado no Brasil pela Quina, em 2022), o escritor indiano Amitav Ghosh até reclamou que a chamada “alta literatura”, ainda presa às convenções do realismo, estava deixando para a ficção científica a tarefa de retratar o colapso ambiental. Depois, Ghosh identificou a proliferação de ficção climática não explicitamente filiada aos gêneros fantásticos a partir de 2018, ano da publicação de “The overstory”, romance de Richard Powers no qual as árvores têm tanta subjetividade quanto os humanos e que será lançado pela Todavia em 2025.

‘Novo regime’

Pesquisador da Associação de Práticas e Pesquisas em Humanidades (APPH), André Araujo explica que a literatura realista se acostumou a tomar a natureza como um cenário estável onde se desenvolviam os dramas humanos. No entanto, o que antes era considerado excepcional e relegado ao fundo da cena (eventos extremos, por exemplo) vem ganhando cada vez mais protagonismo à medida que entramos no que o filósofo francês Bruno Latour chamou de “novo regime climático”.

— Precisamos agora de um novo regime narrativo, capaz de descrever a paisagem em transformação e que não esteja preso aos parâmetros de temporalidade, espacialidade e subjetividade da literatura realista tradicional — afirma o pesquisador. — Na literatura atual, há um impulso de tematizar a emergência climática, mas ainda está em desenvolvimento uma estética que dê conta do mundo em colapso, uma espécie de “realismo do Antropoceno”.

Para Araujo, a ficção climática está em alta no Brasil e na América Latina porque os países periféricos já estão sofrendo com mais intensidade as consequências do colapso ecológico. Bastam como exemplos os incêndios no Pantanal, em 2023, e a atual tragédia no Rio Grande do Sul.

De fato, a crise climática impacta primeiro gente como Deja, brigadista que combate incêndios na Chapada Diamantina em “Contra fogo”, o romance de Pablo L. C. Casella. “A gente não tá num tempo normal”, diz ele. “Cinco, seis incêndios acontecendo agora mesmo dentro do Parque?” Deja sente que os bichos, as plantas e ele são “quase a mesma coisa”. Até o fogo ele respeita. Demolir as hierarquias entre as espécies e falar sobre o não humano é uma das estratégias da literatura que reage à crise ambiental.

— Outro dia, aprendi o termo “biocracia”, que é uma tentativa humilde de nivelar todas as espécies. Os humanos não têm prerrogativas sobre as demais espécies, mas por muito tempo só nos importamos com a crise climática porque ela afeta a nossa sobrevivência, sem nos preocuparmos com o que fizemos com o restante da biodiversidade — diz Casella, que trabalhou no Parque Nacional da Chapada Diamantina.

O que o autor de “Contra fogo” chama de “ética da vida”, esse respeito por todos os seres vivos, também marca “Deslumbramento”, o romance de Richard Powers. Robin, o menino ativista, aprendeu com a mãe a seguinte oração: “Que todos os seres conscientes fiquem livres do sofrimento desnecessário.” Powers, que deu consciência até às árvores em sua ficção, acredita no poder da literatura de sensibilizar o público ao engajamento ecológico.

— Argumentos não mudam a opinião de ninguém. Às vezes, ver um gráfico até desmotiva uma pessoa. Já uma boa história pode mudar sua opinião, convencê-la da necessidade de reconstruir nossa relação com este mundo em vez de insistir na sua destruição — afirma o escritor. — Uma leitora, depois de terminar “Deslumbramento”, se engajou num grupo de proteção aos animais em risco de extinção e acabou presa em um protesto. Foi processada e condenada. Meu coração quase parou quando soube disso. Foi um momento de verdade para mim.

Desde que estudava gestão ambiental, Morgana Kretzmann já acreditava na capacidade de conscientização ecológica da literatura — esse foi o tema de seu trabalho de conclusão de curso.

— Pode parecer utópico, mas acredito na literatura como ferramenta de mudança de pensamento. Na comunhão entre quem escreve e quem lê, pode surgir um novo afeto pelo planeta — diz ela. — Paulo Freire disse que precisávamos de uma “educação planetária” (que contribui para a compreensão do mundo atual e discute alternativas para o futuro), e eu acredito em uma literatura planetária, portadora de consciência ecológica. O alarme já está soando há muito tempo, precisamos escutar.

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