Da linguagem e da fragmentação da realidade
Monges iluminadores, composição do século XV.

Da linguagem e da fragmentação da realidade


Na semana passada, escrevi sobre livros e o motivo de eles continuarem a existir. Felizmente, sou do grupo de pessoas que visitam livrarias nos finais de semana para apreciá-los, senti-los, ver suas capas, cheirá-los e observar o movimento invisível das editorias refletido nas novidades, já que toda semana têm títulos novos nos principais estandes de qualquer livraria. Deve ter uns 8 anos ou mais que não saio para 'andar em shoppings' como meus amigos fazem, mas saio numa tarde chuvosa ou de pleno Sol para caminhar entre livros, mesmo que seja longe da minha casa e mesmo se não tiver dinheiro para comprá-los. Sim, ‘sou dessas’. E, talvez por isso, e por eu sempre ter vivido entre livros, que eu seja ainda uma dessas pessoas que dá mais valor a um textão que traz uma abordagem reflexiva do que a um “twítte” com 140 caracteres. E, sim, não tenho conta no Twitter. 

Observo que há algo muito triste ocorrendo com a comunicação entre as pessoas no mundo. E constato, a cada dia, que elas não conseguem mais compreender sequer seus compatriotas. As pessoas se digladiam em postagens de uma linha, se xingam, se ofendem umas às outras, e replicam o pior dos piores discursos sem mesmo refletirem sobre isso. Além disso, tudo é fragmentado, sem sentido, sem contextualização. Se pensarmos que o mundo digital multiplicou as possibilidades e os potenciais de transmissão, armazenamento e pesquisa, por outro lado, os relacionamentos e a expressividade não estão evoluindo no mesmo ritmo. Ao contrário, parece-nos mais uma ‘involução’: muitos se portam como primatas que têm uma tecnologia avançada nas mãos, mas não sabem o que fazer com ela e apenas apertam botões, pois é divertido.

É verdade que pode ser ‘prático’ e ‘rápido’ ver o mundo pela ótica de 140 caracteres, mas vamos ser realistas: isso é muito pobre, concordam? Como sou de outra geração, aprendi tudo o que sei nos livros, nos estudos e com muito trabalho. No meio disso, tive mestres que me ensinaram a não aceitar tudo, a tentar compreender a realidade, a confrontá-la e a criar um mundo novo com o que ia aprendendo. Devo dizer que não estou apenas jogando um saudosismo barato no ar, apenas para dizer que o passado era melhor. Não, ao contrário, creio que se nós tivéssemos naquela época as facilidades que temos hoje, eu teria aprendido mais em menos tempo. Gosto da tecnologia e também sei que não há como escapar da revolução digital, pois ela faz parte do cotidiano e define até mesmo o funcionamento da vida em sociedade. Mas há algo grave ocorrendo e é preciso perceber o problema e agir rápido, antes que ele abale os principais alicerces da linguagem: compreensão > argumento > diálogo > escrita > coerência > coesão.

E, nesse aspecto, quais são as diferenças reais entre aqueles idos anos 1980 – quando eu estava na Universidade, descobrindo que o mundo era bem maior e mais belo do que meu umbigo, meu bairro e meus desejos – e hoje? Bem, a realidade, e ela nem sempre é o máximo, a realidade daquela época era mais humana, aprendíamos a olhar o mundo e a usar esse novo olhar para observar nosso contexto, ver em uma nova perspectiva. Uma das coisas mais importantes era aprender e estudar coisas novas: isso nos garantiria sair do obscurantismo e mudar a realidade. A paz entre os povos era um objetivo buscado por todos no Planeta, com lutas, com discussões, com seminários, com tudo o que pudéssemos fazer com nossa voz e atuação. A paz era essencial, vital e, para isso, respeitávamos e aceitávamos as diferenças entre povos, línguas, culturas. Nesse contexto de aprendizado e busca, saber compreender, ler e reescrever o mundo era um passo para uma vida transformada, digna, era o Futuro construído. Havia um mundo cheio de problemas e aprendíamos que nós deveríamos ajudar a mudar isso. Havia valores e princípios. E sonhos. E havia ícones, claro: acadêmicos, escritores, pensadores, cientistas e estudiosos eram os nossos modelos e por eles e para eles queríamos ler e escrever mais e mais, e melhor.

E hoje? Sinto, mas a triste realidade é que a comunicação está em decadência, mostrando-se a cada dia mais e mais superficial, fragmentária e efêmera. Começa mesmo a perder o sentido. Vamos analisar: o que as pessoas estão buscando e promovendo? Que valores? Que conhecimentos? A celebridade instantânea, o esforço mínimo dos 140 caracteres? O consumismo cego e desenfreado e a egolatria? A zombaria e o escracho em detrimento dos saberes e dos mestres? É isso? Ouvi, essa semana mesmo, que um dos meus textos era impossível de ler. “Que textão, não tem como ler isso”, foi o que li na telinha do meu android, e quase não acreditei, pois o ‘textão’ era bem menor do que este aqui. Isso me fez sentar-me num banquinho, ali na rua mesmo, e refletir. O que está acontecendo? As pessoas, ao mesmo tempo em que se aprofundam nesse universo do instantâneo, também perdem a empatia, a paciência, a capacidade de ler, de ouvir e ver, e até mesmo de sentir! Por outro lado, elas têm tempo para repostar centenas de twíttes vazios e sem sentido, ou imagens de pessoas desconhecidas, mas que são ‘celebridades’, muitas vezes pessoas também vazias e que apenas esbanjam seus bens e ‘sucessos’, ostentam futilidades, ou ainda se prestam a repassar palavras insensatas, ofensas ao outro, mentiras e mais mentiras, desrespeitos, opiniões que desqualificam o outro, piadas de mau gosto, racismo, homofobia, opiniões infames etc.

E mais: mesmo os que ainda escrevem algumas linhas parecem estar perdendo pouco a pouco a capacidade de articular o pensamento, de manter uma sequência lógica, correta e coerente. As poucas linhas impulsivas estão deformando a nossa escrita e comunicação, essa é a verdade. E eu me lembro de quantas críticas recebemos, nós professores, quando nos idos inícios da internet e do e-mail, esse fenômeno começou a principiar, e chamávamos a atenção dos alunos para que escrevessem de forma correta! Havia, na mídia, uns ‘grandes’ defensores da ‘inclusão digital’ que propalavam as benesses das mensagens instantâneas e a ‘nova linguagem’ que nascia ali, e diziam que estávamos sendo 'antidemocráticos'. Bem, vamos separar as coisas: ter um escopo linguístico próprio, com códigos próprios dentro de um grupo pode ser interessante para a comunicação deste grupo, pois a Língua é viva e isso realmente é um traço de sua vitalidade. Mas estou falando de outra coisa. Estou falando dos processos negativos que subjazem a essa necessidade incessante e neurótica de ficar conectado mas não é capaz de refletir, da aceleração e da fragmentação impostas que esquartejam a língua e a comunicação, tornando-as um monstrengo ou um Frankenstein mal acabado. E o pior de tudo, os grandes veículos de massa estão pouco a pouco passando por esse mesmo processo: vemos erros grosseiros de digitação, parágrafos sem sentido, concordância ou sintaxe ‘estrambóticas’ e os discursos perigosos das meio-verdades, das falseações e fake news até mesmo nas páginas dos grandes jornais e sites. Tudo isso, infelizmente, além de empobrecer a língua e a escrita, cria um ‘muro’ que isola as pessoas em grupos distintos, ou provoca uma ebulição de contrários impensados (já que diminui a empatia e o diálogo) e favorece a polaridade de ideias, os ódios, os ataques, as violências de diversos tipos. A vivência acelerada, mas acéfala.

E é óbvio que esse fenômeno, mais cedo ou mais tarde, acabará por afetar a capacidade de reflexão, articulação e redação das pessoas de uma forma ainda mais profunda. O problema é a leitura apressada, o passar de olhos e a negação aos textões que dão trabalho, e que podem afetar a maneira como as pessoas entendem ou decodificam determinado discurso. Hoje estamos vendo isso de maneira exacerbada em relação ao assunto ‘política e economia de um país chamado Brasil’: vemos pessoas se negando a compreender a posição do outro, mantêm-se numa posição radical e apenas por pensarem diferente partem para o ataque e a ofensa declarada. 

As redes sociais e aplicativos de mensagem hoje são ferramentas que desagregam a comunicação entre as pessoas, já que as convencem de que uma reação rápida substitui a aptidão em expressar argumentos e sensações. Usar excessivamente as redes suprime o diálogo, o ‘vis-a-vis’ e, com o tempo, a pessoa começa a considerar difícil, penoso ou mesmo desnecessário analisar uma concepção ou o discurso do outro, passando a não lhe dar atenção, descartando-o! Ou seja, se a lógica que as empresas visam é exatamente manter a pessoa todo o tempo ligada, num incessante movimento fragmentário, com objetivo de consumo e isso é usado sem pensar, mas apenas como ato de ‘consumo’ de informações, o que acontece? Lamento informar, mas isso, esse uso irrefletido e exacerbado (que é o que ocorre hoje) afeta toda a capacidade de reflexão, estruturação e esclarecimento humano. A pessoa pode ter sido, no passado, um mestre da escrita e da articulação da linguagem, mas se ela se desviar e absorver esse movimento insano e começar a repetir e repetir e repetir essa loucura, em pouco tempo ela só será capaz de articular 15 palavras básicas e, mesmo assim, sem expressar nenhuma empatia pelo outro: será o eco primata de uma linguagem esquecida.

João Batista Porcidonio

Regência Música, Pós Grad Problemas Brasileiros - UFRJ POEB - Ext. Política e Org da Educação Básica - USP/ 2019

6 a

A confusão da linguagem na comunicação em geral começou, não exatamente nas redes sociais, senão primeiro, através e, ou pelos redatores das empresas de informes e textos explicativos de aplicativos, softwares, buscas, tecnologia da informação, escritas e textos jargativamente pedante e próprio das razões dos metiês da informática e seus modismos de comunicação estrangeiristas. O idioma português no Brasil está uma calamidade, ou transformou-se numa espécie de farofafá de uva passa, banana e ovo, tudo junto e misturado. E leva consigo um arrastão de ideias sem nexo, ininteligíveis, cuja intenção parece ser, transformarmos-nos num cérebro de geleia geral da mentalidade e pensamentos rasos. No meu entendimento isso não é um mero acaso. É e faz parte de uma fragmentação sutil sobre a ideia de uma ilusão chamada Brasil.

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