Espectro da violência humana

Espectro da violência humana

Na obra de Graeber & Wengrow (2021) (GW) sobre o despertar de tudo (nova história da humanidade), vamos aprofundar o espectro da violência humana. “Quando se trata da violência nos povos pré-Estado”, diz Pinker, “Hobbes e Rousseau falavam pelos cotovelos: nenhum sabia nada sobre a vida antes da civilização”. Aí Pinker tem razão, mas logo alega crer que Hobbes, escrevendo em 1651, teria chegado mais perto da verdade, e logo apõe uma análise da violência e suas causas na história humana que “é tão boa como qualquer outra hoje” (Pinker, 2012). Este foi um veredito espantoso, e condenatório, por séculos de pesquisa empírica, mesmo tão irreal. Não chega nem perto. Podemos tomar Pinker como o moderno quintessencial hobbesiano. Se livrão, The Better Angels of our Nature: Why violence has declined (2012), e livros subsequentes como Enlightenment now: The case for reason, science, humanism and progress (2018) argumenta que hoje vivemos num mundo que é, sobretudo, bem menos violento e cruel do que tudo que os ancestrais experimentaram (2012; 2018). 



I. CONTRAINTUITIVO



Parece contraintuitivo a quem ouve o dia inteiro na mídia sobre violência humana, sem conta o que já sabe sobre a história do século 20. Pinker, porém, se mostra confiante de que uma análise estatística objetiva, não sentimentalista, vai mostrar que vivemos numa era de paz e segurança sem precedentes. E isto, sugere, é resultado lógico de viver em Estados soberanos, com monopólio do uso legítimo da violência dentro das fronteiras, oposto às “sociedades anárquicas” (como as chama) de nosso passado evolucionário, quando a vida da maioria era, de fato, tipicamente, desagradável, bruta e curta. Já que, como Hobbes, Pinker está atarefado com as origens do Estado, a transição não estaria na agricultura, mas na emergência das cidades. Diz ele que “arqueólogos nos dizem que humanos viviam em estado de anarquia até a emergência da civilização há cerca de 5 mil anos atrás, quando agricultores sedentários primeiro se ajuntaram em cidades e Estados e desenvolveram os primeiros governos” (2012:42). O que segue é, colocando abertamente, é uma derrapada de um psicólogo tão alinhado ao cientificismo. Espera-se dele apreço pela evidência, mas isto não conta muito para ele. Fia-se em anedotas, imagens e descobertas individuais sensacionalistas, como as manchetes acham, em 1991, de “Ötzi, o homem tirolês do gelo”. Como analisar os antigos, pergunta Pinker num ponto, pois não deixaram cadáver interessante sem recorrer a jogo sujo? Há resposta óbvia: não depende de que cadáver se considera interessante antes de mais nada? um pouco antes de 5 mil anos atrás alguém andando pelos Alpes deixou o mundo dos vivos com uma flexa ao lado; mas não há razão particular para tratar Ötzi como uma propaganda da humanidades em sua condição original, só porque cabe no argumento de Pinker. Se só escolhemos a dedo o que interessa, poderíamos ter selecionado o funeral anterior conhecido dos arqueólogos como Romito 2 (depois que o abrigo rochoso calabrês foi descoberto). Vejamos por um momento o que poderia nos dizer, se tentássemos. 

Romito 2 é funeral de 10 mil anos de um homem com desordem genética rara (displasia acromesomélica): tipo severo de nanismo, que em vida tornaria anômalo na comunidade e incapaz de participar no tipo de caça de grande altitude que era necessário para sobreviver. Estudos desta patologia mostram que, a despeito de níveis geralmente precários de saúde e nutrição, a mesma comunidade de caçadores-coletores ainda tinha dificuldade de apoiar este indivíduo na infância e na primeira idade adulta, garantindo-lhe a mesma partilha de carne como para os outros e ultimamente dando-lhe um funeral cuidadoso e protegido (Tilley, 2015). Não é caso isolado. Quando arqueólogos empreendem apreciações balanceadas de funerais de caçadores-coletores do paleolítico, acham altas frequências de deficiências relativas à saúde – mas também, surpreendentemente, altos níveis de cuidado até ao tempo da morte (e além, já que alguns dos funerais eram marcantemente luxuosos) (Formicola, 2007). Se não chegamos a uma conclusão geral sobre qual forma as sociedades humanas tinham originalmente, com base em frequências estatísticas de indicadores de saúde dos funerais antigos, teríamos de alcançar a conclusão exata oposta a Hobbes (e Pinker): na origem, poder-se-ia pleitear, nossa espécie é uma espécie cuidadora e solícita e não havia necessidade para a vida de ser desagradável, bruta e curta. Não se sugere fazer isso. Como se há de ver, há razão para crer que no paleolítico, apenas alguns indivíduos eram enterrados. Quer-se apenas pontuar quão fácil seria jogar o mesmo jogo em outra direção – fácil, mas francamente não muito ilustrativo. Tomando em conta a evidência atual, sempre achamos que as realidades da vida social inicial humana eram bem mais complexas, e bem mais interessantes, do que todo teórico do Estado de Natureza moderno suporia. 



II. SELETIVIDADE ENVIESADA



Quando se seleciona a dedo estudos antropológicos de caso e colocamos na berlinda como representativos dos “ancestrais contemporâneos” – i.e., como modelos do que humanos teriam parecido no Estado de Natureza – quem trabalha na tradição rousseauniana tendem a preferia forrageiros africanos como Hadza, Pigmeus ou !Kung. Quem segue Hobbes prefere os Ianomami. Estes são população indígena que vive amplamente ao largo de fazendas e mandioca na floresta tropical amazônica, sua terra natal, na fronteira do sul da Venezuela e do norte do Brasil. Desde os 1970, os ianomamis arranjaram reputação como selvagens quintessenciais violentos: “povo feroz”, como seu etnógrafo mais famoso Chagnon os chamou. É bem grosseiro para com os ianomamis, já que, de fato, estatísticas mostram não serem especialmente violentos – comparados com os grupos ameríndios, as taxas de homicídio dos ianomamis são, na média, muito baixas. De novo, a estatística não importa tanto quando a disponibilidade de imagens dramáticas e anedotas. A razão real de os ianomamis serem tão famosos e têm tal reputação tão colorida, tem a ver com o próprio Chagnon: seu livro de 1968 – Yanomamö: the fierce people – que vendeu milhões de cópias e também uma série de filmes, como The Ax Fight, que dava aos espectadores um relance vívido de guerra tribal. Por um momento, isto tornou Chagnon o antropólogo mais famoso do mundo, no processo de tornar os ianomamis estudo notório de caso da violência primitiva e estabelecer sua importância específica no campo emergente da sociobiologia. 

Sendo justo com Chagnon (nem todos são), ele nunca pleiteou que os ianomamis devessem ser tratados como remanescentes vivos da Idade da Pedra; de fato, muitas vezes anotou que não eram obviamente. Ao mesmo tempo, e de algum modo inusitadamente para um antropólogo, tendia a defini-los primariamente em termos de coisas que lhes faltavam (e.g., linguagem escrita, força policial, judiciário formal), opostamente aos traços positivos de sua cultura, que tem o mesmo efeito de os colocar entres os primitivos quintessenciais (Kopenawa & Albert, 2013:2-3). O ponto central de Chagnon era que homens adultos ianomamis efetivam vantagens culturais e reprodutivas matando outros adultos homens; e este feedback entre violência e aptidão biológica – se em geral representativo da condição inicial humana – teria tido consequências evolucionárias para nossa espécie como um todo (Chagnon, 1988). Lembram os AA que este “se” é enorme. Outros antropólogos passaram a colocar questões, nem sempre amistosamente (Albert, 1989. Ferguson, 1989. Chagnon, 1990). Alegações de conduta antiprofissional foram levantadas contra Chagnon (em geral em torno de padrões éticos no campo), e todos tomaram partido. Algumas das acusações parecem sem base, mas a retórica dos defensores de Chagnon tornou-se tão acalorada (como outro antropólogo celebrado, Geertz, coloca) que não só foi mantida como epitome de antropologia rigorosa científica, mas todos que o questionavam ou seu darwinismo social foram exorcizados como “marxistas”, “mentirosos”, antropólogos culturais da esquerda acadêmica, “aiatolás” e “corações sangrando politicamente corretos”. Até hoje, não há jeito mais fácil de incitar antropólogos se acusando mutuamente como extremistas do que mencionar o nome de Chagnon (Geertz, 2001). 

O ponto aqui é que, como povo “sem Estado”, os ianomamis seriam exemplos do que Pinker chama de “arapuca hobbesiana”, pela qual indivíduos em sociedades tribais se acham presos a ciclos repetitivos de assaltos e guerra, vivendo vidas precárias muito atribuladas, sempre a alguns passos da morte violenta na ponta de uma arma pontiaguda ou ao baque de um taco vingador. Para Pinker, aí está o tipo de destino fatal imposto pela evolução. Temos apenas escapado dele por virtude da vontade de nos colocar sob a proteção comum dos Estados-nações, cortes da lei e forças policiais; e também abraçando virtudes do debate racional e autocontrole que Pinker vê como herança exclusiva do “processo civilizatório” europeu, que produziu a Era do Iluminismo (e outras palavras, não fosse por Voltaire e a polícia, a briga de foice sobre os achados de Chagnon teria sido física, não só acadêmica) (GW:16). Muito problemático este argumento. Um lado mais óbvio é a ideia corrente de que ideais de liberdade, igualdade e democracia são produto da tradição ocidental, o que seria muito estranho para Voltaire. Pensadores iluministas que os defenderam invariavelmente colocam-nos nas bocas de estrangeiros, até mesmo de “selvagens como os ianomamis. Não surpreende, já que é quase impossível achar um único autor na tradição ocidental, desde Platão a Marco Aurélio, a Erasmo, que não esclareceram serem contrários á ideia. O termo “democracia” poderia ter sido inventado na Europa (por muito pouco, já que a Grécia à época estava mais próxima culturalmente da África Norte e Oriente Médio do que, digamos, da Inglaterra), mas é quase impossível achar um único autor europeu do século 19 que sugerisse ser uma forma muito terrível de governo (Graeber, 2007b). 

Por razões óbvias, a posição de Hobbes tende a ser aclamada pela direita, enquanto a de Rousseau pela esquerda. Pinker quer ficar no meio, para não ser extremista, mas não há razão para atribuir apenas ao grupo humano dito branco ou da civilização ocidental o progresso humano. Poderíamos identificar mui facilmente inícios do racionalismo, legalidade, democracia deliberativa etc. no mundo todo e só então contar a estória de como surgiu o sistema global atual. Insistir em que tudo de bom veio da Europa, garante que nossa obra pode ser lida como apologia retroativa do genocídio, já que (aparentemente, para Pinker) a escravatura, assalto, assassinato em massa e destruição de todas as civilizações – visitados no resto do mundo pelas potências europeias – é apenas outro exemplo de humanos comportando-se com sempre foram; não incomum. O que foi bem significativo, assim reza o argumento, é que tornou possível a disseminação do que ele toma como noções “puramente” europeias de liberdade, igualdade perante a lei e direitos humanos aos sobreviventes. Seja qual for o lado desagradável do passado, Pinker assegura-nos, haver toda razão para ser otimista, até feliz, sobre a rota geral que a espécie tomou. Chega a conceder haver lugar para preocupação em áreas como redução da pobreza, desigualdade de ingresso ou mesmo paz e segurança; mas, no todo – e relativamente a quem vive hoje no mundo – o que temos agora é melhoria espetacular em tudo que nossa espécie realizou em sua história até aqui (a menos que sejamos negros, ou vivamos na Síria, por exemplo). A vida moderna é, para Pinker, em quase tudo superior ao que foi antes; e aí produz estatísticas elaboradas que querem mostrar como todo dia em todo modo – saúde, segurança, educação, conforto e por quase todo parâmetro concebível – tudo está atualmente indo melhor e melhor. 

Os AA aceitam ser difícil brigar com estatísticas, mas, dizem os estatísticos, os números são tão bons quanto suas premissas em que se baseiam. Será que a “civilização ocidental” realmente tornou a vida melhor para todos? Ao fim, há o problema do que seria felicidade, difícil de medir (Chagnon, 1990:990). Em geral, aceitamos que o progresso material existe (basta comparar uma caverna dos ancestrais com Nova York), mas se felicidade é feita também e sobretudo de dimensões não materiais, podemos não ter progredido muito, muito menos é o caso colocar a Europa como modelo de virtude. Os AA acham Pinker bem extraviado. 



III. O QUE MAIS VALE A PENA NA VIDA



Nos últimos séculos, houve ocasiões sem fim nas quais indivíduos se acharam numa posição de ter de escolher – e quase nunca seguiram a expectativa de Pinker. Alguns nos deixaram explanações claras racionais para por que fizeram a escolha, e tomam como exemplo Helena Valero, brasileira nascida de família espanhola, que Pinker menciona como “menina branca” abduzida por ianomamis em 1932 enquanto viajava com os pais no remoto Rio Dimití. Por duas décadas, Valero viveu com uma série de famílias ianomamis, casando-se duas vezes e eventualmente chegou a uma posição de certa importância na comunidade. Pinker cita brevemente o registro que Valero deu depois de sua própria vida, onde descreve a brutalidade de um assalto ianomami (Pinker, 2012:54). Esquece de mencionar que em 1956 ela abandonou os ianomamis para buscar sua família natural e viver de novo na “civilização ocidental”, só para achar-se em estado de fome ocasional e marginalização constante e solidão. Após um tempo, dada a habilidade de decisão informada, Valero decidiu que preferia viver entre os ianomamis e voltou a eles (Biocca & Valero, 1965). 

Não é uma estória incomum. A história colonial da América do Norte e Sul está repleta de registros de colonizadores, capturados ou adotados por sociedades indígenas, sendo-lhes dada a escolha de ficar e quase sempre preferiam ficar (Heard, 1977). Vale até para crianças abduzidas. Confrontadas com seus pais biológicos, a maioria preferia os adotivos (apud Heard, 1977:55-6). Em contraste, ameríndios incorporados na sociedade europeia por adoção ou casamento, incluindo quem – ao contrário da desafortunada Helena Valero – desfrutavam de considerável riqueza e escolarização, quase invariavelmente iam para o lado oposto: escapar na primeira oportunidade, ou – tendo tentado se ajustar e ultimamente tendo falhado – retornar à sociedade indígena para lá viver. Entre os comentários mais eloquentes sobre este fenômeno está uma carta privada de Franklin a um amigo: “Quando uma criança índia é trazida entre nós, ensinada a língua e habituada aos nossos costumes, mesmo assim, se for visitar seus parentes e conseguir interagir com um índio, não há como persuadir de voltar, e isto não é só natural como índios, mas como humanos, está claro a partir disso que, quando brancos de ambos os sexos são tomados como prisioneiros jovens por índios, e viveram um tempo entre eles, mesmo acossados por seus amigos e tratados com imaginável ternura para os levar a ficar entre os ingleses, mas e tempo breve ficam desgostosos como nossa maneira de vida e o cuidado e penas qu são necessárias para suportar e tomam a primeira oportunidade para escapar para a floresta, de onde nunca mais voltam. Um exemplo de que me lembro ter ouvido, no qual a pessoa estava para se trazida para casa para possuir um bem imobiliário grande; mas achando algum cuidado necessário para o manter, abandonou ao irmão mais novo, reservando-se a si nada mais que uma arma e um casaco, com o que voltou para o mundo selvagem” (Franklin, 1961/1753:5481-3). Assim, muitos que se envolveram em contendas sobre civilização, se assim se pode chamar, tiveram suas razões para decidir ficar com os captores. Alguns frisavam as virtudes da liberdade que achavam em sociedades nativas americanas, incluindo liberdade sexual, mas também liberdade da obrigação de constantemente correr atrás de terra e riqueza (Schultz, 1935:46. Heard, 1977:42); outros anotavam a relutância índia de não deixar ninguém pobre, com fome ou destituído. Ainda, alguns viram a facilidade com que outsiders capturados por famílias índias passaram a ase adaptar bem e chegaram a posições importantes na comunidade (Heard, 1977:44). Bravatas ocidentais não sobrevivem ao mínimo escrutínio. 



IV. COMO A NARRATIVA CONVENCIONAL DA HISTÓRIA HUMANA NÃO ESTÁ SÓ EQUIVOCADA, MAS DESNECESSARIAMENTE BABACA



Emerge o senso de que a vida indígena era, para colocar cruamente, bem mais interessante que a vida numa cidade “ocidental”, especialmente enquanto a última envolvia longas horas de atividade monótona, repetitiva e conceitualmente vazia. O fato de acharmos difícil imaginar como uma vida alternativa poderia ser sem fim envolvente e interessante é talvez mais uma reflexão sobre os limites de nossa imaginação sobre a própria vida. Um dos aspectos mais perniciosos das narrativas padrão da história mundial é precisamente que a tudo ressecam, reduzam as pessoas a estereótipos de cartões, simplificam as questões (somos inerentemente egoístas e violentos, ou inatamente ternos e cooperativos?) de modo que eles mesmos solapam, até mesmo destroem, nosso senso de possibilidade humana. Selvagens “nobres” são, ultimamente, tão chatos como os selvagens; ademais, sequer existem. Helena Valero foi esclarecedora neste ponto. Os ianomami não eram demônios, dizia ela, nem eram anjos. Eram humanos, como todos. Temos de ser transparentes aqui: teoria social sempre, necessariamente, implica um pouco de simplificação. Por exemplo, quase toda ação humana poderia ser dita ter um aspecto político, ou econômico, ou psicossexual e assim por diante. Teoria social é amplamente um jogo de fazer crer no qual pretendemos, por via de argumentação, que há apenas uma coisa acontecendo: essencialmente, reduzirmos tudo a uma história em quadrinhos de sorte a sermos capazes de descobrir padrões que seriam, por outra, invisíveis. Resulta então que todo progresso real na ciência social esteve enraizado na coragem de dizer coisas que são, no fim da análise, um pouco ridículas: o trabalho de Marx, Freud ou Lévi-Strauss sendo apenas casos salientes. Precisamos simplificar o mundo para descobrir algo novo nele. O problema vem quando, bem depois da descoberta feita, as pessoas continuam a simplificar... Hobbes e Rousseau contaram aos contemporâneos coisas que eram surpreendentes, profundas e abriram novas portas da imaginação. Hoje as ideias já cansaram. Não vale mais continuar simplificando as simplificações. Precisamos adentrar nas complexidades, que são bem mais interessantes e variadas. Uma história tão empobrecida precisa ser revitalizada. 

Desde que Smith tentou provar que as formas contemporâneas de mercado competitivo se fundam na natureza humana, apontam para o que chama de “comércio primitivo”. Muitos milhares de nãos depois, podemos achar evidência de objetos – por vezes pedras preciosas, conchas e outros itens de adorno – sendo transadas a enormes distâncias. Muitas vezes eram o tipo de objetos que antropólogos iriam depois achar usados como “moedas primitivas” no mundo. Então isto prova que o capitalismo, de uma forma ou outra, sempre existiu? A lógica é circular. Se objetos preciosos estavam se movendo a longas distâncias, é evidência de “comércio” e, se comércio ocorria, deve ter tido algum tipo de forma comercial; portanto, o fato de que, digamos, há 3 mil anos âmbar báltico achou seu caminho para o Mediterrâneo, ou conchas do Golfo do México foram transportadas para Ohio, é prova de que estamos perante alguma forma embrionária de economia de mercado. Mercados são universais. Logo, deve ter havido mercado. Logo mercados são universais. Etc. Todos os autores estão alegando que não podiam pessoalmente imaginar nenhum outro modo para objetos preciosos se moverem. Mas falta de imaginação não é em si argumento. É quase como se tais escritores tivessem receio de sugerir algo que parece original, ou, se o fazem, sentem-se obrigados a usar linguagem vagamente soando como científica (“esferas transregionais de interação”, “redes multiescalares de permuta”) para evitar terem de especular sobre o que tais coisas poderiam ser. De fato, a antropologia provê ilustrações ilimitadas de como objetos valiosos poderiam viajar longe na ausência de algo que remotamente parecesse uma economia de mercado. 

O texto fundador da etnografia do século 20, Argonauts of the Western Pacific, de Malinowski (1922), descreve como na “cadeia kula” das Ilhas Massim de Pápua Nova Guné, homens teriam feito expedições ousadas pelos mares perigosos em canoas de forquilha, para permutar conchas preciosas relíquias de família e laços de pescoço entre si (cada um dos mais importantes tinham nomes próprios e a história dos possuidores anteriores) – só para manter brevemente, então passar para frente de novo para outra expedição diferente de outra ilha. Tesouros relíquias de família circulam a cadeia insular eternamente, cruzando centenas de quilômetros oceânicos, conchas e laços em direções opostas. Para um outsider, parece sem sentido. Para os homens de Massim era a aventura última, e nada podia ser mais importante do que espalhar seu próprio nome, desse modo, para lugares nunca vistos. É isso “comércio”? Talvez, mas força a romper o conceito como o temos. Há uma literatura etnográfica substancial sobre como tal operação à longa distância operar em sociedades sem mercados. Escambo ocorre: grupos diferentes podem pegar especiarias – uma é famosa por seu trabalho de pena, outras provê sal, numa terceira as mulheres são ceramistas – para adquirir coisas que não podiam produzir por si; algumas vezes um grupo vai se especializar no próprio negócio de mover pessoas e coisas. Mas muitas vezes achamos tais redes regionais se desenvolvendo amplamente para criar relações mútuas amistosas, ou tendo uma escusa para visitar alguém de tempos em tempos (Trigger, 1976:62. Servet, 1981; 1982. Wengrow, 2010b); e a há muitas outras possibilidades que não se parecem com comércio. 

Os AA então listam alguns poucos materiais todos norte-americanos, para dar uma ideia do que poderia estar acontecendo quando pessoas falam de “esferas de interação a longas distâncias” no passado humano: i) missões de sonhos ou visões: entre povos de fala iroquês nos séculos 16 e 17 era visto como extremamente relevante literalmente realizar os sonhos; muitos observadores europeus como índios estariam dispostos a viajar por dias para trazer de volta algum objeto, cristal ou mesmo um animal como um cão que sonharam ter; quem sonhasse sobre a posse de um parente ou vizinho (uma chaleira, ornamento, máscara etc.) podia normalmente demandá-la; tais objetos iriam muitas vezes viajar gradualmente de alguma forma viajar de aldeia a aldeia; em Great Plains, decisões de viajar longas distâncias em busca de itens raros ou exóticos podiam fazer parte de missões de visão (Graeber, 2001:145-9); ii) curandeiros e animadores viajantes: em 1528, quando um náufrago espanhol, Cabeza, veio da Florida via o que agora é Texas até México, achou que podia facilmente passar entre aldeias (mesmo em guerra) oferecendo seus serviços como mágico e curandeiro; curandeiros em muitas partes da América do Norte eram também animadores, e podiam muitas vezes desenvolver séquitos significativos; quem sentia ter sua vida salva pela performance tipicamente oferecia todas as suas posses materiais para serem divididas entre a trupe (Hudson, 1976:89-91); por tais meios, objetos preciosos podiam facilmente viajar longas distâncias; iii) jogatina de mulheres: mulheres em muitas sociedades norte-americanas eram jogadoras inveteradas; mulheres de aldeias adjacentes se reuniam muitas vezes para jogar dados ou um jogo de bola e pedra de ameixa e tipicamente apostariam suas joias e outros objetos de adorno pessoal; um arqueólogo versado em literatura etnográfica, DeBoer, estima que muitas das contas e outros trecos exóticos descobertos em sites a meio caminho pelo continente lá chegaram sendo ilimitadamente apostados e perdidos, em jogos inter-aldeias do tipo, em períodos muito longos de tempo (DeBoer, 2001). Tais exemplos poderiam ser multiplicados. 



V. SOBRE O QUE SEGUE



“Neste livro vamos não só apresentar uma nova história da humanidade, mas convidar o leitor a um anova ciência da história, que restaure nossos ancestrais para sua plena humanidade. Ao invés de perguntar como nos tornamos desiguais, vamos começar perguntando como foi que ‘desigualdade’ virou tamanha questão, depois gradualmente construir uma narrativa alternativa que corresponda mais de perto ao estado corrente do conhecimento. Se humanos não gastaram 95% de seu passado evolucionário em bandos ínfimos de caçadores-coletores, o que estariam fazendo então? Se agricultura e cidades não significam um mergulho na hierarquia e dominação, então o que implicam? O que estava realmente sucedendo naqueles períodos que usualmente vemos como ocasionando a emergência do “estado”? As respostas são muitas vezes inesperadas, e sugerem que o curso da história humana está menos fixo e mais cheio de possibilidades lúdicas, do que tendemos a assumir” (GW:25). Há a pretensão de colocar as questões corretas, não especulações soltas. 



CONCLUSÃO



Mudar o rumo da história é pretensão enorme, também em ciências, por conta das “certezas” enrijecidas. A fixidez da natureza humana sempre usada para ancorar ideologias supremacistas, sobretudo as hierarquias vigentes visas como inamovíveis. Mesmo sabendo que sociedades humanas são hierárquicas, são incrivelmente maleáveis. Democracias são possíveis, ainda que todas sejam muito imperfeitas. Mitologias se criam e depois são dificílimas de romper, como a ideia de que agricultura inventou a propriedade privada e as cidades os governos. O exemplo apresentado é bem ilustrativo: para a sabedoria comum, se um objeto anda pelo país, é porque é comercializado. Os AA mostram que objetos se movem por muitas outras razões, inclusive pelo comércio. Humanos possuem formatos dados biologicamente montados pela evolução, mas, sendo esta aberta, plástica, podem mudar. Seria perfeitamente aceitável alegar que humanos poderiam tornar-se uma espécie tipicamente cooperativa, mesmo sendo cooperação também de princípio. 



REFERÊNCIAS



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Marcos Aparecido Navarro

Diretor na Navarro Soluções em Inovações Negócios ,Serviços e Educação.E diretor da N.FAPPI,Escola Profissionalizante.

1 a

Parabéns sucesso Renan excelente Artigo.👏👏👏

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