Lições que aprendi limpando privada na Irlanda aos 40
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Lições que aprendi limpando privada na Irlanda aos 40

Um intercâmbio aos 40 é tipo fazer as malas e ir morar no olho do furação da zona de desconforto. Não se tem mais 20 aninhos. E a adaptabilidade tem que ser gigante. Principalmente quando se deixa pra trás uma boa posição social, carreira sólida, mestrado, casa e carro confortáveis. É mais difícil ainda quando se é coladinha na família e nos amigos.

Mas foi isso mesmo que fiz. Depois de ter galgado muita coisa ainda me sentia infeliz. Infeliz e cheia de culpa por estar infeliz. Tinha conforto, mas me sentia muito desconfortável.

Não dava pra mais pra fingir. E a demissão foi o empurrão (e o dinheiro que eu precisava) para me jogar naquela aventura sonhada desde a adolescência.

O plano era fazer o tal do tal Gap Year. Queria deixar pra trás a Mivla professora, coordenadora de curso superior, empreendedora e mestre em comunicação. Queria ser outras. Queria ser ninguém. Desaparecer dos papéis e pressões sociais e experimentar outras realidades. Me perder pra me encontrar.

Mas sem dinheiro suficiente pra todo esse tempo eu precisaria trabalhar. E lá fui viver meu intercâmbio raiz. 70% medo, 30% coragem e disposição pra qualquer coisa.

Com o inglês the-book-is-on-the-table que eu tinha, as opções de trabalho eram limitadas. E os boletos começaram a vencer em Euro. Foi então que virei faxineira num pequeno hotel, no centro da cidade de Galway, na costa oeste da Irlanda.

Fui de coordenadora de cursos em uma universidade privada no Brasil a limpadora de privada na Europa. Legal o trocadilho, né? Mas foi um soco. Seco. No pau do nariz. Sem dúvida, o maior processo de adaptação, superação, aprendizado e resiliência que experimentei (pelo menos, tinha sido, até essa quarentena).

Obviamente, é im-pos-sí-vel partilhar aqui todos os perrengues, vivências e lições desse trampo. Mas vou me esforçar pra não deixar nada valioso pra trás.

Vi o mundo do lugar de quem serve e aprendi sobre humildade

Nunca fui soberba. Buscava me relacionar amável e respeitosamente com todas as pessoas, em todas as posições sociais. Mas isso é completamente diferente de estar vivendo na posição do servir. Na linha mais baixa do organograma de uma empresa. Usando um uniforme preto, de cabelos presos, unhas sujas, cara lavada e cheiro de água sanitária.

Lavando banheiros, arrumando camas, limpando sujeiras e restos de comidas por mais de seis meses, tive a exata noção do quanto esses trabalhos são nobres, primordiais e pouquíssimo valorizados.

Na cultura brasileira, absurdamente desigual, parece haver uma crença de que sempre haverá quem nos sirva. Por isso, pouco se paga, pouco se colabora, pouco se facilita. Na Irlanda percebi mais admiração e gratidão por quem cuida do que ninguém quer cuidar.

Esse job me levou a outro patamar na forma como me relaciono com os que servem. Facilito, incluo, elogio e não os deixo passar desapercebidos. Dou moral mesmo. Pra mim, são ídolos.

Elevei o trabalho braçal à mesmíssima categoria do intelectual.

O hotel poderia ter uma estratégia de publicidade genial que atraísse hóspedes do mundo inteiro. A gerente poderia ser eficiente e atenciosa. O design interno, fenomenal. Mas, olha, nada substituía a experiência que as pessoas tinham nos quartos que eu limpava. Deixar cada um deles impecáveis, com camas convidativas e banheiros brilhantes era tão relevante quanto todos os outros esforços.

E é assim com tudo. Na vida e no trabalho. Reuniões, eventos, treinamentos, almoços de negócios, happy hours, confraternizações, festas e em infinitas outras atividades. Nada disso é realizável sem a chamada turma dos bastidores.

Ficou muito evidente pra mim que quem prepara, monta, cozinha, carrega, dirige, limpa e garante proteção é tão relevante e digno como qualquer outro. Não há desnível ou julgamento de valor. Braçal e intelectual são indispensáveis e indissociáveis.

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Confirmei que valores essenciais independem do onde.

Depois de algum tempo naquela função eu já olhava pro hotel e queria fazer melhorias. Propus uma nova metodologia pra compras de produtos de limpeza, sugeri folgas em dias alternados para a equipe e montei um ‘Manual da Housekeeper’, criando processos e padrões de qualidade na arrumação dos quartos. Fui logo promovida a camareira chefe e assumi a responsabilidade pela nota de limpeza do hotel no booking.com. Também passei a escolher as tarefas que faria, a equipe com quem trabalharia e os dias de folga.

Mas era só um trabalho temporário, Mivla! Você não podia ter feito apenas a sua parte?

Claro! Muitos fizeram isso o intercâmbio todo. E tá tudo bem. Não foi planejado. Mas ali, eu reforçava algo sobre a minha forma de ser e encarar as coisas.

Aquilo me mostrou que, independentemente de estar liderando equipes complexas ou limpando privadas, sempre crio ambientes mais eficientes e prazerosos. Isso é crucial pra mim. Isso é meu.

Por isso os valores essenciais são tão importantes. Eles ajudam a definir quem é você, o que te motiva e o que te diferencia dos demais. Seja onde e como for.

Enxerguei a minha posição de privilégio como um lugar de responsabilidade.

Realizar um trabalho braçal é nobre. Mas não deveria ser a única alternativa por falta de conhecimento e capacitação. Incomodou profundamente saber que eu tinha escolha enquanto muitos não a tem.

Entendi que quem consegue, de alguma forma, alcançar posições de destaque precisa abrir portas, ser facilitador e ofertar oportunidades. Ser co-responsável pela inclusão e pelo acesso de outros à condição de escolha.

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Limpar privadas na Irlanda me jogou no desconhecido, no anonimato e no completo desconforto. Me perdi e me encontrei com a minha essência mais genuína. Pude compreender os porquês de muitos dos incômodos pré-intercâmbio. E sigo, agora, mais confiante na construção da minha própria realidade de vida e trabalho. Alicerçada, cada vez mais, nas pessoas, na inclusão, no respeito à diversidade e no sucesso coletivo e sustentável.

São lições valiosíssimas que aplico na prática. Todo dia. Aprendizados que precisam ser mais que reflexões-de-uma-intercambista-quarentona-privilegiada-em-processo-de-autoconhecimento.

 (Texto originalmente postado em detrasprafrente.com, meu blog de crônicas e artigos sobre vida e trabalho (e um intercâmbio aos 40!). Vem me ler!)

Se quiser me acompanhar mais de pertinho, vem de insta! (@mivlarios)

E para saber mais sobre aulas, mentorias individuais, palestras ou consultorias corporativas, mande email para mivlarios@detrasprafrente.com ou chame inbox!

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Sobre o autora:

Atuando como professora, mentora, consultora corporativa, palestrante ou escritora, gosto de ajudar pessoas e empresas a se redescobrirem e construírem formatos de trabalho mais prazerosos, eficientes e sustentáveis. Acredito que gente merece (e deve) viver e trabalhar com aquele quentinho no 💗.

Uhauuu!Quero você palestrando para as mamães.A@DivinaAmamentação efetua palestras em atendimento social.

Mivla, são pequenos gestos que nos transformam. O amor a paixão pelo pela igualdade é bárbaro .

Karine Kobarg Damázio

Sales Strategy | Data & Consumer Insights

4 a

Muito legal seu texto, Mivla! Acho que o maior ensinamento que podemos receber e compartilhar com os outros é o respeito, vestir o “chinelo da humildade” independente do seu tipo de trabalho. Tratar da mesma forma quem te serve e quem te lidera. Essa é a forma de fazermos belas peças de arte na vida.

Flavia Gamonar

Posicionamento, influência e negócios no LinkedIn / Educação corporativa / Prof. Mestra / Mentora / Instrutora oficial LinkedIn Learning / Autora Unique Stories / MBA Tech para negócios (IA) / Prof. MBAs

4 a

uau, não pare de escrever! Amei demais!

Perfeito. Perfeita!

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