O Nascimento da Morte

O Nascimento da Morte

Um relato reflexão desabafo sobre o semestre em que virei pai e perdi meu pai.

Agosto, setembro, outubro e novembro de 2021 me presentearam com uma daquelas transformações significativas e loucas, que vivemos algumas vezes na vida e reviram completamente nossos mundos.

Tudo parece que perde seu encaixe e harmonia e várias transformações acontecem simultaneamente em todas as dimensões do viver.

São momentos tão impactantes que podemos chamá-los de mortes e renascimentos. Morrem e renascem nossas visões de mundo, nossas identidades e papéis, nossa maneira de lidar e interpretar as situações, nossas relações, nosso trabalho (ou maneira de trabalhar ou o significado do trabalho), nosso emocionar. De repente o sentido das coisas se desloca completamente e, por consequência, nossa maneira de ser e existir se desloca também.

Agosto, nasceu minha filha Eva, nasceu minha esposa mãe Bruna e eu pai. Foi um evento e tanto. Bruna, uma heroína, viveu praticamente 48h de trabalho de parto. Parte em casa, parte no hospital, parte todo o trabalho do parto natural e a parte final uma delicada cesárea. Assim como Eva, nascemos todos ao final desse mês, sem fazermos a mínima ideia do que seria esse mundo novo que nascia junto com a gente.

Setembro, começamos a descobrir, lidar, nos envolver e aprender com esse novo mundo. E eu nem consigo expressar o quanto não estava preparado. De tudo o que estudei e me preparei, a única coisa realmente útil foi respirar e tentar ficar presente diante do desconhecido. Mas, nem isso eu conseguia acessar a todo momento. O que posso dizer com clareza e sem dúvidas é que o início da minha relação com minha filha despertou o melhor e o pior de mim.

Nunca imaginei que seria capaz de fazer tantas coisas num curto período de tempo e por tanto tempo e dormindo tão pouco. Emagreci 10kg nesse mês, o que não é nenhum motivo de orgulho ou celebração, apenas mostra em quantas e intensas atividades me envolvi.

Outubro, comecei um movimento natural e (quase sempre) difícil de deixar ir o Ale de antes, um Ale que eu gostava muito. Mas, esse Ale não poderia existir mais no novo contexto.

Comecei a abrir espaço, aos poucos, para o Ale pai começar a nascer. Uma morte e renascimento mesmo.

Esse Ale pai se mostrou muito tranquilo quanto ao futuro, muito aberto para ter várias pessoas em casa circulando, ajudando e guardando as coisas em lugares muito diferentes. Também se mostrou muito presente, participando de tudo, aprendendo de tudo e experimentando de tudo. O Ale pai também se descobriu com muita raiva, um sentimento muito vivo na adolescência que reapareceu com força total. Nunca senti tanta raiva, tanta tensão muscular, tanto ritmo pulsante e acelerado. Ao longo desse mês e do próximo, fui tentando entender essa raiva e, mesmo sem entender, fui aprendendo a lidar com ela, conversando muito com a Bru, minha mãe, meu amigo sócio parceiro de áudios diários de escuta e aprendizados Fabio, e, também, após ter vivido uma experiência de Aikido com meu amigo sócio e sansei Marcio. Respirar, estar presente e deixar que o movimento necessário se revele.

Até aqui, vinha experimentando um movimento emocional de abertura, curiosidade e aprendizado. Algo muito vivo e pulsante.

Ainda em outubro, algo muito inesperado aconteceu. Meu pai começou a sentir algo estranho no corpo por alguns dias, até que percebeu que sua pele estava ficando amarelada. Foi ao hospital e a suspeita inicial era que haviam pólipos em sua vesícula.

Por aqui, no meu coração, tranquilidade. Meu pai, saudável, fitness, no pior dos casos ia ter que tirar a vesícula e seguir a vida.

E então, numa terça-feira, 12 de outubro, nós aqui em casa acordamos diferente. Parecia que, pela primeira vez desde o nascimento da Eva, estávamos experimentando um sentimento de leveza e alegria. Bru e eu colocamos música, dançamos com ela… estava tão gostoso que gravei um vídeo para mandar pra família e pro meu parceiro de experiências Fábio. Fabio e eu trocamos experiências e reflexões diárias há 2 anos.

Mandei pra ele o vídeo e essa mensagem:

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Assim que enviei a mensagem pra ele, entrei no grupo da família para compartilhar o vídeo e a alegria. Na mesma hora, chegou uma mensagem da minha mãe:

“Família, notícia nada agradável. Papai está com câncer. Nós dois já choramos muito. Agora vamos para os passos do que será feito.”

E a mensagem seguiu com detalhes sobre o que seria feito a partir dali para termos mais informações.

Logo, o restante da mensagem para o Fabio foi assim.

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E assim é a vida. As coisas acontecem desse jeito. Cada um aqui já viveu, por várias vezes, o que vivi nesse 12 de outubro.

De repente, o estado emocional de abertura e aprendizado que estava vivendo, começou a ser transmutado para um estado de medo, fechamento e apreensão quanto ao futuro.

Assim que soube da notícia, corri para o hospital, para estar com meu pai e minha mãe. O hospital não me deixou entrar por conta dos protocolos da Covid. Minha mãe, então, desceu e nos encontramos na calçada do hospital. Ela contou tudo. Choramos. Nos abraçamos.

Com o passar dos dias, conseguimos nos organizar com o protocolo e todos puderam estar com meu pai. Inclusive meu irmão, que viajou o mundo para estar com a gente nesse período.

E por aí seguiram-se 20 e poucos dias.

Novembro, meu pai descansou. Ele concluiu a jornada. Ele se despediu em paz.

Algo incrível que aconteceu nesse período foi que todos os familiares mais próximos que puderam se encontrar com meu pai, saíam do encontro em paz. Meu pai escolheu viver a situação, um dia de cada vez, com muita esperança, confiança, aceitação e paz.

Choramos juntos, cantamos juntos, nos abraçamos, trocamos carinhos, compartilhamos histórias, deu tempo até de dar uma brigadinha clássica de pai e filho. Eu sempre voltava bem pra casa. Triste, mas bem.

Muitas das coisas que se passam pela minha cabeça e meu corpo, eu nem percebo pela correria do cuidado com minha filha, mas algumas muito especiais eu percebo, noto e contemplo. A reflexão que consigo fazer até agora e que sinto vontade de compartilhar tem a ver com quatro aprendizados importantes.


Deixar ir

Não há possibilidade de aprender e continuar vivendo sem deixar ir aspectos muito importantes que nos fazem ser quem somos. Quem podemos ou precisamos ser agora e para frente, precisa do espaço vazio deixado pelo que fomos e não faz mais sentido sermos.

E é um dilema muito complexo, porque quem fomos nos trouxe até aqui, mas para seguirmos, precisamos abrir mão dessa identidade e deixar ir o que não faz mais sentido e não tem mais vida (mesmo que a gente não perceba isso claramente).

Na minha vida, como foi difícil deixar ir uma carreira que estava me dando muito reconhecimento e orgulho, mas também me tirando a saúde e me levando para um lugar onde eu não queria chegar. Mas, como foi delicioso (e penoso) ver nascer uma nova jornada profissional que fazia mais sentido.

Como foi difícil deixar uma uma série de crenças e valores culturais/religiosos que me ensinaram a me relacionar com Deus mas que, ao mesmo tempo, pareciam ter me afastado dEle. Mas, como foi delicioso (e desafiador) ver nascer uma nova relação com a espiritualidade, com Deus e com os outros.

Como foi difícil deixar ir um casamento de 10 anos que já não estava vivo há alguns anos e eu não havia percebido. Mas, como foi delicioso (e trabalhoso) confiar de novo no desconhecido e conhecer uma parceira de vida que me trouxe para uma outra relação, uma outra família que tinha tudo a ver comigo.

Como foi difícil deixar ir minha identidade que tanto me dava orgulho, aceitação e paz. Mas, como está sendo delicioso (e apavorante) deixar nascer um pai e um novo parceiro para uma família e uma relação a 3 com a Bru e a pequena Eva.

E, como foi difícil deixar meu pai ir. Ainda bem que ele sempre deixou claro que estava pronto para ir. Mas, como é difícil deixar ir a pessoa do meu pai e a representatividade de um pai que sempre esteve presente na minha existência. Como seguir a vida sem ele? Como continuar seguindo a vida com ele, mas sem a presença dele?

Como disse meu sempre amigo Kelson, em uma mensagem que leio diariamente, esse vazio que se apresenta estará sempre presente e vai doer, mas também vai mostrar de uma maneira mais clara e profunda que ninguém é insubstituível. E, se relacionar com esse vazio passa a ser assustador e também muito bonito!


Conviver

Dois amigos especiais, Fabio e Diego, que viveram experiências e perdas muito mais impactantes que as minhas, me aconselharam desde o início de que, no final das contas, o que faria a diferença era a convivência. Aproveitar o tempo para conviver e estar disponível, presente e vivendo a vida com essa pessoa amada.

E eu agarrei esse conselho e foi isso que fez valer a pena!

Foram apenas 25 dias entre a internação e a despedida do meu pai. Nesse curto período de tempo, vivi uma vida inteira com ele. Ouvi histórias. Fiz cafuné. Choramos juntos. Lemos juntos. Oramos juntos. Cantamos música abraçados. Discutimos sobre temas idiotas. Demos risada. Eu aprendi com ele as coisas mais preciosas da vida dele e que ele queria deixar muito claras nesse momento. Nos amamos.

Conviver é algo que todo mundo fala ser o mais importante, mas é muito difícil sustentar a convivência. Seja pela "correria do dia a dia"(a desculpa mais esfarrapada e sintomática de alienação à vida), seja pelo nosso orgulho e soberba de não queremos nos deslocar para viabilizar uma convivência com qualquer alguém amado que sempre será diferente e nos desafiará a sermos diferentes.

Quando escolhi (incluindo meus desafios, meus preparos e meus privilégios) trabalhar meio período para conviver com minha filha, comecei a perceber que era muito mais confortável e fácil simplesmente ir trabalhar. Ir trabalhar não desafiava a minha identidade como a minha filha desafiava! A convivência com ela não é nada fácil. Mas, faz sentido! Mas, vale à pena! Mas, faz a vida valer à pena! E vou continuar convivendo, com ela e com muitos que me amam e me desafiam, ou me desafiam porque me amam.

Conviver é a dignidade que precisamos para existir. Não existimos sem convivência (por mais que tentemos nos iludir de que damos conta de sustentar nossa vida sozinhos).


Damos conta de viver ambiguidades

Somos humanos poderosos.

Por mais impossível que possa parecer conviver simultaneamente com o nascimento de uma nova vida e com o luto. Com a emoção de abertura a novas possibilidades vibrantes e com a emoção de fechamento, reclusão de uma vida que não mais existe. É possível conviver com essa ambiguidade e viver completamente a experiência.

Nada é fácil. Mas, é possível.

E, quando não está nada fácil, quando tento separar muitas experiências em caixinhas ou temas separados, me lembro que sou uma integralidade das minhas experiências e o que a vida está me ensinando agora é essa integralidade, é essa possibilidade de viver tudo isso ao mesmo tempo.

E a gente dá conta. Porque somos humanos extraordinariamente comuns.


Se entregue para a vida, ela é assim mesmo!

Por fim, compartilho o que pra mim foi o maior aprendizado que meu pai quis me deixar ou o aprendizado que mais me impactou.

Quando conversei com ele a primeira vez sobre a notícia do câncer e como ele estava se sentindo, ele disse: Ale, a vida é assim, todo mundo passa por isso, você vai passar por isso e agora chegou a minha vez de passar por isso.

Vocês não imaginam o tamanho da paz que senti quando ouvi isso. Eu estava presenciando uma de minhas referências, me ensinando a aceitar, encarar e viver a vida como ela se apresenta.

Em outro dia, ele me falou que tinha muita esperança de viver e também muita tranquilidade para morrer.

Outro dia, ele falou que já era suficiente ele saber que tinha uma doença grave e incurável. Que, a partir daquele momento, ele iria se entregar à Deus, se entregar ao que a família e os médicos acreditassem que seria o melhor caminho, que ele iria se entregar a viver o dia a dia, dentro da rotina dele com as histórias do dia a dia que a família e amigos próximos estavam vivendo.

No final das contas, ele estava escolhendo manter sua conexão com a vida. E, pra isso acontecer, precisa de uma entrega ao desconhecido e um discernimento claro de que não temos controle.

Para vivermos a vida, precisamos abrir mão da ilusão do controle e nos entregar.

Em presença e entrega, cada momento é uma eternidade. Uma eternidade que vale a pena ser vivida.

E eu espero aprender a viver de eternidade em eternidade daqui pra frente, honrando essa convivência e as outras incríveis convivências que tenho. Honrando os momentos eternos e efêmeros de prazer e dor que a vida me presenteia.

Mãe, te amo!

Anderson, tem amo!

Brubs, te amo!

Eva, te amo!

Su, te amo!

Leo, te amo!

Família, toda, amo vocês!

Patota, te amo!

Corallines, amo vocês!

Unlearnd, te amo!

Amuters, te amo!

Caórdicos, amo!

Trio, te amo!

Amiguetos, amo vcs!

Nu Aquário, te amo!

Amigos todos, tatuienses, iaspenses, paulistanos, CPBanos, ABN AMROanos, Sadianos, Boehringerianos, FAAPianos, Prismáticos, Sementianos, Coralianos, clientes e parceiros queridos, amo vocês.

Pessoas que ainda irei conviver, amo vocês!

A convivência com vocês faz valer a pena!

Paula Costa

Mother | Speaker | Parentalidade nas Empresas: mentoring parental+formação para RH e líderes+talks | Facilito a troca da Exaustão pelo Entusiasmo para quem trabalha e tem filhos | Mentora @ NovaSBE VOICE Leadership

3 a

No mês que também meu pai partiu... E eu lanço meu projeto "Parents&Partners" sobre como a Parentalidade precisa de uma "aldeia moderna", uma cidade inteira na verdade... ler seu texto me emocionou demais. Inicios e fins se sobrepoem. Obrigada por ter dado à luz este texto para todos nós. Enjoy your days! 🌻

Que texto lindo!

Ale, que presente esse compartilhamento! Vc é de fato muito especial. Vivi a experiência de perder meu pai no dia seguinte que minha primeira filha nasceu. Aprendi que a energia da vida é muito mais forte do que qualquer outra coisa. E tive muita gratidão por meu pai ter cuidado de mim até na hora de partir. Ele foi no momento que estava inundada de alegria com a chegada da Carol!! A vida é um presente! Sou grata a Talita Chiodi por ter nos conectado!!

Sheila Becker

Sócia na eNGENHARIA dE gENTE

3 a

Que lindo te ler. Obrigada por compartilhar, grande abraço

Moara Souto Vieira 🫀

Design de Conexões, TEDx Hostess, Facilitadora das Relações Humanas e do Envolvimento Humano

3 a

Que lindo!! Grata por compartilhar❤️

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