Reminiscências
Arquivo Pessal - Gramado/RS

Reminiscências

Quando criança, minha família mudava constantemente de endereço. Sabem como é, salário pouco, orçamento apertado, cada vez que aumentava o aluguel, lá estava o caminhão estacionado diante de casa para transportar os móveis, eletrodomésticos, trecos e cacarecos para outra casa. Nessas idas e vindas, teve casa boa e outras nem tanto, felizmente o que nunca foi ruim, foi o lar que cada construção sempre abrigou. Dentre essas residências, teve uma que trago doce na memória. Ela ficava numa rua sem saída e o quintal terminava num barranco de uns 3 ou 4 metros de altura, que dava para o pátio da estação ferroviária. Meu pai era manobrador na EFA - Estrada de Ferro Araraquarense, ou seja, era ele quem engatava os vagões nas locomotivas, um trabalho que exigia força física e concentração, para correr ao longo dos trilhos e preparar os engates entre um vagão e outro e conectar as mangueiras dos freios. Ficava sentado no alto do barranco,  vendo o velho Boiadeiro (era esse o apelido de meu pai, coisa que nunca entendi direito, pois o mais perto que vi o coroa de um boi, foi na hora do almoço, diante de um belo bife) deslizar por entre os trilhos e trens com fantástica agilidade. Ô fase boa, precisava tão pouco para ser feliz: minha casa, minha família, meus cachorros (a Bolinha e seu filho Lobinho) e um bando de amigos "xexelentos", com apelidos que hoje dariam muito pano prá manga e seriam classificados como politicamente incorretos: Zaroio, Pé de Pato, Cudiguim, Petróleo, Boca Murcha e por aí afora.Aliás, atualmente, está difícil entender a sociedade, nem sei como seria se eu tivesse nascido nos tempos de hoje. Tudo é bullying, preconceito, os relacionamentos de nossas crianças estão cada vez mais artificiais, acontecendo somente no ambiente escolar e nada mais. Os muros das casas estão cada vez mais e mais altos, com as entrelaçadas concertinas e cercas elétricas, não existem mais aquelas cerquinhas de arame fino que delimitavam nossos quintais, onde cresciam agarrados os pés de bucha. Os novos condomínios isolam os moradores, que raramente se conhecem um ao outro e que quase nada compartilham de suas vidas. Ninguém pede mais uma xícara de açúcar ou de farinha emprestada para o bolinho da tarde com café preto. Cadê o futebol de rua? As brincadeiras de bola queimada? Cabra-cega, bate-lata e esconde-esconde, folguedos de minha infância que minhas netas e suas amigas desconhecem? Beijos, abraço, aperto de mão ou passeio? SALADA MISTA!!! Na minha época, tudo era muito diferente, famílias criavam seus filhos num clima de comunidade e todos se conheciam, as vizinhas recolhiam as nossas roupas do varal, todos se conheciam pelo nome e sabia-se parte da árvore genealógica de cada um. O João, era o pai da Maria; a Zefa era irmã da Assunta, a Cleide era mãe do Zequinha e por aí, afora. Não tinha essa de Espaço Kids, eu brincava mesmo era na rua, não tinha tanto carro e motos, não havia tantos perigos e essa maldade lascada. Verdade que não podia ir muito longe, a mãe não deixava, mas até o quarteirão de cima, estava liberado. De vez em, quando, rolavam umas tretas, uns sopapos, mas no outro dia, estava todo mundo lá, soltando pipa. Hoje, nem sei mais onde estão meus amigos de infância, mas meu desejo é o de que todos estejam vivos, bem e felizes. Agradeço pelas alegrias que ainda experimento com as doces lembranças e, quem sabe, um dia, a gente se vê para chupar umas mangas Bourbon na beira do córrego. E não desanimo, acho que ainda dá tempo da gente consertar o homem para arrumar o mundo, vivendo em paz com a gente e com a natureza. 


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