Ignorância Artificial
Estamos tão preocupados em tornar nossas máquinas inteligentes que estamos nos esquecendo de formar também humanos mais sábios
Atualmente falamos de forma tão orgulhosa e recorrente sobre o tema da inteligência artificial aplicada às máquinas que quase não paramos para refletir sobre aspectos que talvez caminhem na contramão conceitual quando tratamos dos criadores destas ...
Primeiro devemos esclarecer que estamos abordando a inteligência sobre um aspecto amplo da cognição, embora a aplicação prática desta faculdade no presente artigo esteja mais voltada aos tipos da “lógica matemática” e “linguística” dentro da abordagem de Howard Gardner.
Embora inexista consenso conceitual, empregaremos o termo “inteligência” como a capacidade de compreender e resolver novos problemas e conflitos e de adaptar-se a novas situações. Esse conjunto terminológico será suficiente para suportar nosso discurso junto ao presente artigo.
O aumento do poder de processamento em hardware e a sofisticação dos recursos de software possibilitou neste século que comecemos a simular processos de inteligência em máquinas, que por isso chamamos de “artificial” (em artigo futuro abordaremos uma reflexão específica sobre o fato de empregarmos o termo “artificial” ao invés de “simulada”).
Basicamente a inteligência de máquina funciona recebendo um input do meio externo que é convertido em um dado, é processado segundo parâmetros definidos e devolvido ao meio externo como um output.
Este processo é semelhante em máquinas e humanos, pois nós também recebemos um input do meio externo através de um de nossos sentidos, processamos a informação em nosso sistema nervoso e devolvemos ao ambiente externo um output. Pense em uma conversa entre amigos, você capta as falas através de seu sistema auditivo, processa a informação e devolve através da produção de vibrações no ar geradas por sua voz, a qual será captada pelos sistemas auditivos de seus amigos, processadas e também devolvidas a você ...
Se apenas analisarmos este fluxo (input, processamento e output) a superioridade da máquina é enorme, primeiro porque a quantidade de dados que a mesma pode receber por segundo é muito maior do que a nossa, e segundo porque a capacidade de processar este volume de dados em parâmetros definidos também é muito maior na máquina do que em um ser humano.
Aqui nasce nosso grande erro, ao nos depararmos com este grande poder (criado por nós), muitas vezes nos assustamos com nossa própria criação, sentindo-nos derrotados ou tentando competir, ao invés de somar.
O diferencial do cérebro humano é justamente a capacidade que lhe permitiu criar os computadores (juntamente com este enorme poder de processamento), que é a sua plasticidade, adaptabilidade e criatividade.
O processo de inteligência de máquina é gigantesco em capacidade de processamento, mas opera somente em uma “faixa segura” criada por nós, onde definimos preliminarmente os parâmetros a serem utilizados, as regras aplicáveis, os critérios, enfim ... passamos todas as coordenadas de trabalho a serem aplicadas. Daí pra frente a máquina se incumbe de tudo, mas na etapa que antecede esta ação nosso cérebro ainda é imbatível.
Mesmo mecanismos de “aprendizado de máquina” operaram claramente mediante parâmetros e estruturas, sendo que sua “flexibilidade” ainda é apenas uma emulação de nossa capacidade.
Tentar competir com um computador em “processamento de dados” é como pedir para um bebê recém-nascido que entre no ringue para uma luta de boxe com Muhammad Ali ... um massacre decretado.
Mas quando tratamos de criação, adaptação e inovação as máquinas simplesmente não têm vez.
Estamos falando de nossa incrível capacidade natural, que vem sendo esculpida há milhões de anos em um processo que culminou nos seres que vemos hoje quando ficamos em pé diante do espelho.
Voltemos à definição de Inteligência trazida no início do artigo: “capacidade de compreender e resolver novos problemas e conflitos e de adaptar-se a novas situações”.
Nossa natureza nos trouxe até aqui, mesmo sendo biologicamente frágeis frente à grandes e poderosos predadores, nos adaptamos, aprendemos, questionamos, inventamos, aplicamos e como consequência ... vencemos.
Nosso tipo de inteligência natural é peculiar e vital para o desenvolvimento de tecnologia, inovação e aprimoramento constante de tudo (inclusive nós mesmos).
Chegamos ao ponto vital de nosso texto, somos biologicamente inteligentes e naturalmente criativos, mas alguns processos de nossa vida social parecem querer nos tornar ignorantes artificialmente.
Sim, artificialmente porque esta não é nossa natureza e nem uma ação do ambiente, mas sim do próprio ser humano.
Nosso modelo de educação e trabalho muitas vezes aplica a inteligência humana como se estivesse lidando com um computador, simplesmente requerendo que o indivíduo memorize dados e depois os regurgite quando necessário.
Não é difícil ilustrarmos este quadro, basta relembramos nossa vida em uma típica sala de aula ... nós decoramos a molécula da água, memorizamos como aplicar a fórmula de Bhaskara, gravamos fatos históricos, retemos dados geográficos, etc ... Na essência desta descrição estão verbos que sempre remetem ao processo robótico de receber um input, memorizar e quando solicitado emitir um output ... o vestibular faz isso conosco não é verdade ? A maioria dos estudantes memoriza Bhaskara sem saber de fato “para que serve” o conceito ... e depois vão se tornar professores que também não vão saber contextualizar os conteúdos ...
Adiante em nossas vidas profissionais muitas vezes desempenhamos uma parte de um processo e sequer sabemos de fato o “porquê” de estarmos concretizando determinada ação. Pergunte para um atendente que está realizando seu “cadastro” qual o real motivo de a empresa precisar do número de seu CPF por exemplo ... em muitos casos as pessoas estão fazendo algo pelo fato de alguém lhes disse para fazer, não questionam, não pensam, apenas atuam mecanicamente ...
Por questões óbvias este é o tipo de mão de obra perfeito para ser substituído (com vantagens) por um algoritmo em um software ...
Muitas vezes parece que estamos sendo “emburrecidos artificialmente”, tendo nosso senso crítico amortecido, nossa curiosidade trancafiada e por consequência nossa inteligência diferenciada guardada em uma gaveta ...
A verdadeira inteligência humana pode ser inconveniente em ambientes autocráticos, pois sua natureza inquieta promove o permanente questionamento, a reflexão e a mudança contínua (favor não confundir inquietação com teimosia, pois são atitudes muito diferentes).
Nossa capacidade natural é de sermos como as crianças ... livres, simples, divertidos, curiosos, imaginativos e criativos ... e de alguma forma nosso processo de formação adulta tira estas virtudes de uma parte significativa da população.
Nossa vocação não é para a ignorância, e é disto que estamos tratando, parece que nós mesmos a produzimos ao tirar das pessoas o estímulo para questionar e criar sem se preocupar com adequações e padrões fixados ...
Estamos tão preocupados em tornar nossas máquinas inteligentes que estamos nos esquecendo de formar também humanos mais sábios ...
Um professor em sala de aula ou um gerente de departamento deveriam se sentir estimulados quando um aluno ou colaborador faz perguntas e desafia conceitos ... ao invés disto muitas vezes agem como se fosse uma forma de desafio pessoal à sua autoridade.
A sociedade muitas vezes prescreve “pensamentos enlatados” através de preceitos como certo e errado, esquerda e direita, vitória e derrota ... enfim, verdadeiras pílulas conceituais predefinidas que são consumidas e a partir das quais tudo que não se alinha deve ser anulado ...
O verdadeiro processo de formação deve ser capaz de questionar e desafiar o status quo permanentemente, devemos “ensinar as pessoas a aprender”, transmitindo-lhes conhecimento e mostrando qual a utilidade (aplicação) concreta deste ... estimulando as mesmas a inserir a expressão “e se ?”. E se isto estiver errado ? e se pudermos fazer de outra forma ? e se houver solução melhor ?
Dentro deste contexto nós da Perfix repensamos nosso modelo de cursos, pois queremos transmitir informação e também estimular nossos alunos a serem os profissionais que irão reelaborar nossos conceitos, através do resgate de nossa verdadeira inteligência.
CEO e Founder da Perfix Consultoria | Consultora de Gestão Pessoas | Neurociência, Coaching
4 aExcelente reflexão! Estamos esquecendo de "ser"humano