As muitas faces da Cultura
O final de semana passado* foi marcado, dentre outras coisas, pela decretação da falência da Livraria Cultura. Como leitor e comprador de livros obsessivo também lamentei, mas a profusão de textos laudatórios me lembrou o ditado que diz que “dos mortos só se fala bem”. Diferentemente do caso das Americanas não vi nenhum texto mostrando que a empresa, ainda que icônica, também tivesse seus podres.
Durante a minha vida, tive contatos com a empresa como diferentes “personas”, essas são as faces que relato abaixo.
A primeira, desde a minha adolescência foi como cliente. Nesse ponto, praticamente não tenho críticas. Era a livraria onde os vendedores eram leitores, sabiam o que vendiam e se dedicavam a entender os gosto do cliente para indicar de forma muito precisa um livro ou outro, coisa que nenhuma das outras gigantes da época tinha. Só mais tarde tive tratamento similar quando descobri a livraria da Vila. O espaço era extremamente agradável, a organização dos assuntos impecável. Enfim, era o paraíso dos leitores.
Da experiência como cliente só me chamou a atenção de forma negativa a maneira como lideram com seu programa de relacionamento (tinham um programa bem básico de cash back) que foi interrompido sem nenhum aviso aos clientes (eu mesmo descobri na boca do caixa quando fui usá-lo).
Já no fim do milênio passado e começo desse, me deparei com a segunda face. Eu trabalhava para uma editora conhecida. O relacionamento da livraria com seus fornecedores era cruel, espremiam até a última gota de sangue. Afinal, eles eram a Cultura, nós os pobres mortais que precisávamos estar lá. Do ponto de vista de marketing não era muito diferente, conseguir fazer o lançamento de algum livro em alguma das suas unidades não muito diferente do passeio de Dante e Virgílio pelos 9 círculos do inferno.
Não me surpreendeu (ainda que tivesse achado uma canalhice) que a livraria, quando começou a ter problemas financeiros, não pagasse a editoras nem pelos livros deixados lá em consignação.
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A terceira face foi em uma tentativa de oferecer serviços de marketing com dados, como consultor. Marquei a reunião com uma pessoa, ela mandou um aspone em seu lugar que chegou com um considerável atraso para o encontro. Para piorar começou a me dizer que eles já faziam tudo aquilo que eu estava oferecendo (o que era uma grossa mentira, eu era cliente fiel e sabia que não praticavam nada do que falavam). Do alto do pedestal da arrogância se achavam os donos do mundo.
Essa mesma arrogância, de quem chegou a deter 40% do mercado, que levou a empresa, em um momento que as principais livrarias do mundo a reduzir seus espaços físicos, a expandir sua rede com lojas monumentais em espaços caríssimos (a loja do Iguatemi que o diga), a trocar seus atendentes por vendedores comuns que mal sabiam onde localizar os livros na loja, quanto mais saber do que se tratavam e, finalmente, começar a não honrar seus compromissos com seus fornecedores, especialmente editoras e, por tabela, os autores. Deixou de pagar impostos, deixou de pagar dívidas trabalhistas, deixou de pagar os aluguéis...
Em recuperação judicial negociou os pagamento da dívida em suaves prestações mensais até a eternidade. Também não pagou.
Devem existir outras faces, das quais não tenho autoridade para falar, mas certamente meus colegas que analisam a gestão econômico-financeira das organizações podem explicar melhor o que levou uma empresa líder de mercado a construir uma dívida tão significativa. Como disse acima, eu lamento muito o fechamento da Cultura. Como lamento todas as vezes que espaços que espalham conhecimento são fechados. Mas não ponho a minha mão no fogo por nenhuma delas.
*Hoje um juiz suspendeu liminarmente a falência, o que me parece apenas um recurso procrastinador.
Country Manager at RIGOL TECHNOLOGIES
1 aExcelente relato!