A nobre podridão
O consumo de vinho no Brasil é absolutamente incipiente. Cada brasileiro bebe aproximadamente 2 litros por ano, o que é quase nada, em comparação aos 50 litros dos argentinos, ou principalmente em relação aos nossos ascendentes portugueses, que já ultrapassaram a marca de 85 litros, sendo, até as informações mais recentes*, os maiores consumidores do mundo. Talvez seja por isso que, para a maioria dos brasileiros, esse negócio de tomar mais de um tipo de vinho em uma mesma refeição seja considerado um luxo.
Se, além de tomar mais de um vinho, ainda mencionamos o fato de escolhermos um específico para a sobremesa, deixamos o limite do luxo e passamos para o ponto da frescura. Mesmo assim, eu recomendo que você faça essa experiência de vez em quando, seja por luxo, seja apenas por frescura. São vinhos geralmente doces, leves e com teor alcóolico um pouco maior que os vinhos comuns. Se você virou o nariz apenas pela menção do termo doce, esqueça tudo que você já bebeu anteriormente - especialmente se a sua referência de alto teor de açúcar for daqueles abomináveis vinhos licorosos de São Roque.
Os vinhos de sobremesa são um capítulo à parte dentre os processos clássicos de vinificação. Existem várias maneiras de se obter maior teor de açúcar residual - a mais óbvia é adicionar açúcar, e também a que gera os produtos de pior qualidade. Outra forma é adicionar suco de uvas adocicadas que, em contato com o vinho, aumentam sua doçura e, por fermentação adicional, também o teor alcóolico. Ainda não são esses os bons vinhos de sobremesa.
Os bons vinhos da categoria são aqueles produzidos com métodos que permitem que a própria uva vinífera acabe com mais açúcares do que seria o normal. O primeiro método é o de provocar a desidratação natural na uva - no pé ou após colhida -, fazendo com que a fruta perca líquidos e a proporção açúcar/água em cada bago seja favorável aos açúcares. São os vinhos chamados de "colheita tardia" (vendage tardive) O segundo, típico de países mais frios, como a Alemanha e - acredite - o Canadá, é o do congelamento dos cachos após a colheita, o que provoca o mesmo efeito desidratador. São os "eiswein" alemães ("ice wine" no Canadá).
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Os melhores vinhos de sobremesa, no entanto, são aqueles que as uvas foram atacadas por fungos, ou melhor: o Fungo - um bichinho chamado Botrytis Cinerea que provoca microperfurações na casca da uva, fazendo com que a desidratação ocorra natural e lentamente enquanto o cacho ainda está no pé. É chamada de podridão nobre. Dentre esses temos os vinhos Tokaj húngaros e, acima de todos os vinhos de sobremesa, os Sauternes. Os vinhos Sauternes são uma experiência inigualável depois que você experimentou outros vinhos de sobremesa. Feitos predominantemente com uvas sauvignon blanc (que atraem mais o Botrytis e de alta acidez), são vinhos doces e ao mesmo tempo ácidos a ponto de não deixar a impressão do açúcar no paladar.
O único grande defeito desse vinho é o seu preço. Como os produtores sérios limitam muito a sua produção para manter os níveis de qualidade - chegando a simplesmente não produzir em determinados anos se considerarem que o resultado final não for o desejado -, a própria lei da oferta e da procura se encarrega de jogar os preços um pouco além da Lua, podendo ir de 40 dólares por uma meia-garrafa de um déuxieme cru até cerca de 700 dólares por uma garrafa de Château d'Yquem - o top do top dos Sauternes. Se você puder, tente comprar uma meia-garrafa de um premier cru que vai custar por volta de 70 dólares. No caso dos Sauternes, é grande a diferença de qualidade entre um premier e um déuxieme.
Outra dica: sempre é melhor comprar meias-garrafas desses vinhos (como de qualquer vinho de sobremesa), a menos que você costume oferecer jantares para um grande grupo de pessoas - vinhos de sobremesa são tomados em cálices, e não em taças, e uma garrafa inteira rende muito.
É um luxo, pode ser uma frescura - mas uma daquelas para nunca mais esquecer.