O vírus que mata e o capitalismo selvagem
Fot: Flavio Sousa

O vírus que mata e o capitalismo selvagem

A corrosão de um sistema baseado no excesso e as tentações autoritárias no Brasil 


Há algumas semanas não visito minha avó. Com 83 anos, está acamada e perdeu parte das capacidades cognitivas. Quando a COVID-19, doença causada pelo novo coronavírus, se tornou uma ameaça real para os brasileiros, e o Prefeito da minha cidade ― Patos de Minas (MG) ― decretou medidas de isolamento social, parei de frequentar a casa dela e, desde então, só saio para trabalhar. Coincidência ou não, a última conversa que tivemos, enquanto estava lúcida, foi justamente sobre doenças graves e infecciosas. Tema um tanto mórbido para almoços de domingo e encontros familiares, mas gosto quando falam do passado. Dona Rosária me disse já ter enfrentando uma pandemia. Não soube precisar qual peste atingiu a geração dela, nem quando aconteceu. Talvez, admito, ela confundiu problemas pontuais com crises de infecção em grande escala. Entretanto, um detalhe me saltou à memoria nesta quarentena: a forma como ela e meu avô administravam o escasso dinheiro da família (o casal e três filhos. Minha mãe e outros dois irmãos não haviam nascido).

Naquela época, me dizia, era preciso muito trabalho para se conseguir o básico. Poucos conheciam o excesso, o luxo. E foi justamente esse ponto que abriu minha reflexão: o que, de fato, é escassez no século XXI? O que é o básico para a maioria de nós e o que era o básico nos anos cinquenta, por exemplo? Ainda que se faça uma leitura seca e resumida da realidade brasileira, as respostas são, no mínimo, complexas e demandariam uma leitura minuciosa da nossa história. É evidente que o essencial nos anos de ouro de Brigitte Bardot não pode ser considerado o básico em 2020. Para ser didático: com minha idade, minha avó não tinha as mesmas necessidades (outra palavra interessante neste contexto!) que a maioria de nós tem agora. E essa discussão ultrapassa a barreira das inovações tecnológicas e como elas transformaram o sistema de produção no mundo todo. Trata-se, na realidade, de deitar a lupa sobre a sociedade, a distribuição de renda e como o acúmulo desequilibrado pode gerar indivíduos insossos. Além disso, a crise nos mostra como uma falha nessa engrenagem faz desmoronar toda uma estrutura baseada no exagero. Um exemplo: nestes tempos difíceis, muito provavelmente você prioriza gastos, poupa dinheiro e aplica em sua casa uma política de austeridade, para falar em economês. O manejo (consciente ou não) do seu suado cascalho coloca em cheque atividades que são alimentadas e produzidas para suprir nossas vontades e anseios existenciais. Uma conversa de marxistas? Acho que não!

Ainda não terminamos de contar os cadáveres da guerra contra a COVID-19, mas muitos calculam quantos podem ― e vão ― morrer para que a roda da fortuna não emperre. E é aqui que outra pergunta surge: é possível que uma sociedade, baseada nas relações de consumo, opere esse sistema de forma sustentável? E, para ser mais paradoxal ainda, capitalismo e sustentabilidade cabem na mesma frase? Em um trecho de O Capital no século XXI, Thomas Piketty apresenta uma resposta pessimista para essa última pergunta. “A marcha em direção à racionalidade econômica e tecnológica não implica, necessariamente, uma marcha rumo à racionalidade democrática e à meritocracia. A razão central é simples: a tecnologia, assim como o mercado, não tem limite ou moral. A evolução tecnológica decerto aumentou a necessidade de cada vez mais qualificações e competências humanas. Todavia, ela também aumentou as necessidades de edifícios, moradias, escritórios, equipamentos de todos os tipos, patentes e, por fim, o valor total de todos esses elementos não humanos ― imobiliários, profissionais, industriais, financeiros ― expandiu-se mais rapidamente do que a produção de renda e a renda nacional durante períodos prolongados.” Embora o economista francês não verse, exatamente, sobre o tema proposto neste artigo, é fato que a concentração de capital ― e a manutenção deste nas mãos de poucos ― é um problema que exige doses cavalares de ousadia. Do contrário, é impossível alterar esse cenário que continua excluindo milhões e escravizando outros milhares. O sistema, no entanto, não esperava que a pandemia fosse capaz de implodir a máquina. Na realidade, fez mais que isso: escancarou uma falha brutal! O excesso não pode nortear parâmetros econômicos, pois, sem perceber, cria uma lógica cruel: a de que coisas têm mais valor que pessoas, e esse nem é um conceito novo. No entanto, também é fato que o homem (no sentido de espécie) há muito expandia o produto deste raciocínio. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman apresenta uma vasta reflexão sobre o tema. Para ele, “a líquida racionalidade moderna recomenda mantos leves e condena caixas de aço”. Ou seja: a sociedade do excesso aprimorou o conceito de que pessoas são equiparadas a objetos. Se eu não gosto, literalmente compro outro, evito compreender, deixo escorrer pelo ralo. E a praga viral sacode essa estrutura. De repente, o que era apenas estatística se transformou em amigos, tias, tios, avós, avôs, mães e pais. As commodities das relações humanas ― abraços, beijos, apertos de mão ― se tornaram produtos de valor agregado, contrariando a chamada “mão invisível do mercado”. O coronavírus é a freada brusca do motorista que dirige o ônibus da vida. Depois de um enorme solavanco, descobrimos que nesse lotação há pessoas, há gente como a gente.

Os últimos dias têm sido cinzentos e tristes. As nuvens pairam pesadamente, e certa aspereza de uma promessa de chuva, contrasta com o azul turquesa do céu mineiro, apesar do calor inebriante. Meu quarto ― antes sinônimo de refúgio e calma ― agora é um desconhecido intrometido e que passa o dia metendo teorias na minha cabeça. Assim, descubro que a solidão tem uma voz grossa, um tanto maviosa, e que, para fugir de sua presença expansiva, reparo no entorno. Personagens antes fantasmagóricos, que não passavam de borrões opacos, ganharam contornos, cores, voz e eu os percebo como iguais, pela primeira vez. Também coloco a prova minha própria humanidade: sem o breque acidental ― que pode ter nos livrado de um acidente com muito mais vítimas ― teria eu enxergado o óbvio? A resposta ecoava no fundo dos meus pensamentos; era tão débil que parecia vir de muito longe: “Não!”. Procurei fazer-me ainda mais pequenino, diante de minha própria mediocridade e que, agora, se arreganha diante de mim, neste quarto enormemente sinóptico.

Fecho os olhos e tento adormecer; refugiar-se no sono evita perguntas incomodas. Silenciados meus demônios, a existência grita lá fora. Só agora percebo que a voz aguda e divertida que desperta meu cochilo é do filho da vizinha. Aquele mesmo cuja última imagem em minha cabeça é de um bebê em fralda e chupeta. O que berra lá fora não pode ser o mesmo! Pernas magrinhas, pequeninas e compridas. Cabelos esganiçados, louros. O corpinho magérrimo se equilibra numa bicicleta prata, e desafia o meio-fio em manobras ainda tímidas, mas ousadas para alguém tão diminuto, tão frágil. Onde eu estava enquanto ele crescia? Tentando ganhar a vida, respondo. Mas qual vida eu queria ganhar? Uma vida que passa tão acelerada que me impede de reparar o crescimento de uma nova vida, bem ao lado da minha? Talvez eu tenha me acostumado, mas para quê? Marina Colasanti tem uma tese da qual gosto muito: “A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.” Perdidos no hábito constante de censurar aquilo que nos torna humanos, nos empapamos da bílis negra do ter, um verbo tão desgastado, mas que ainda faz sentido. Talvez essa seja a resposta para o desejo que temos de status, como definiu Alain de Botton. “Ganhar dinheiro costuma invocar virtudes de caráter. [...] Daí, basta um passo para imaginar que uma conduta extremamente boa e muitas virtudes devem estar por trás da aquisição de armários cheios de camisas de linho, iates, mansões e joias. A ideia de um símbolo de status, um objeto material caro que confere respeito a seu proprietário, na ideia disseminada e nada improvável de que a aquisição dos bens mais dispendiosos deve inevitavelmente exigir a maior de todas as qualidades de caráter.”

É possível deduzir, então, que o acumulo, o excesso e a sede por mais é fruto do medo que temos de olhar para nossas próprias virtudes? Com certeza, não! Essa pergunta é complexa e seria um erro optar pelo reducionismo como resposta. Afinal, há alguma virtude em quem luta por condições melhores, num sistema, quase sempre, injusto e feroz. Considerando esse aspecto, também é lícita outra pergunta um pouco mais venenosa. Roberto Justus (Newcomm) e Junior Durski (Madero) teriam o prestigio que têm, sem suas respectivas fortunas? Não desconsiderando as qualidades de ambos ― posso ser ingênuo, mas acredito que elas existam ― você provavelmente conhece alguém tão inteligente e habilidoso quanto essa dupla de milionários, mas eles têm o mesmo valor? É obvio que não. O status confere poder, e poder é dominação, é influência.

Dominação, autoritarismo e Brasil

               Em Os quatro amores, C.S Lewis defende a ideia de que a caridade é o maior e o menos egoísta dos amores. Por isso, de certo modo, seria esse o que mais aproxima o humano do divino. Na pandemia do século XXI, no entanto, o buraco é mais embaixo. Esperava-se mais caridade ― para usar o termo do irlandês ― daqueles cujo capital é suficiente para atravessar a crise, pois ela é passageira, ainda que dolorosa. Esses, por sua vez, trataram logo de defender suas posses, à custa de “quatro ou cinco mil velhos”. O contraditório é que a maioria deles é cristã, mas não da mesma enfermaria de Lewis, como fica demonstrado. A ameaça do prejuízo, real e palpável, se tornou uma ferramenta poderosa de autoritarismo. Em cada esquina, há uma sensação agoniante, muito semelhante ao medo. Um sentimento perigoso quando déspotas estão no comando do Governo. Como já nos ensinou o estrangeiro Albert Camus, nada como uma população apavorada para gerar um clima de imposição.

               Na peça Estado de Sítio, Camus narra justamente os efeitos do autoritarismo em uma cidade arrasada por uma peste. Os habitantes de Cádiz, cidade onde se passa o enredo, são atormentados por uma epidemia terrível que se alastra rapidamente. Entretanto, o governo está em negação, e não toma providências para conter o mal que pode destruir uma população inteira. A atitude é o reflexo do egoísmo do governador que está irritado, pois a situação priva-o do prazer da caça. No fundo, ele acredita que a praga não o atingirá diretamente e o destino do povo tem menos importância do que de um faisão abatido.

Ou seja, a doença misteriosa é um assunto do povo e só lhe fará diferença se isso alterar seu ritmo de vida. E algumas vozes influentes o acompanham nessa dança macabra, como por exemplo, o juiz e o padre. “A vontade do governador é que nada aconteça em seu governo e que tudo continue bem, como sempre foi”.  É a admissão de que novas ideias, novos fatos, carregam consigo a necessidade de outras explicações. Quando se trata de governo, se as respostas forem erróneas ou falsas, podem ser corrigidas ou desmentidas. Surge então o problema: um possível enfraquecimento da autoridade, que pode culminar em descrédito e desobediência.

               A população atravessa momentos complicados. Não há solidariedade, não há compaixão. Cada um quer se livrar da praga a seu modo, endurecidos em seu próprio medo. Cádiz logo é colocada em estado de sítio. A partir daí, a coisa só piora. Dentre as restrições, algumas são bem peculiares como “a ridícula angustia da felicidade”. No fim, para resumir e não estragar a leitura de quem desconhece a obra, tudo termina em rebelião.

               Esse texto nos ajuda a compreender a nossa própria realidade. O autoritarismo nos cerca e surge das profundezas do reacionarismo; um desejo ferrenho de romper as estruturas institucionais. A democracia é golpeada, pois uma peste, assim como a de Cádiz, atrapalha o prazer daqueles que detém o grande capital. Haverá prejuízo, as previsões do Comitê de Política Monetária (COPOM) estimam uma recessão perto de 6% ainda neste ano ― a pior na história brasileira. Com as previsões do apocalipse embaixo do braço, os pastores da riqueza anunciam a morte não por COVID-19, mas por fome, em decorrência da depressão econômica ― uma falácia cientificamente comprovada. Nós, os sitiados nesta na Cádiz tupiniquim, corremos apavorados para as calculadoras e olhamos com mais otimismo a baixa letalidade da doença. Impedidos de ganhar a vida (e em muitos casos o pão de cada dia) e alimentar nosso desejo de status somos os primeiros a nos rebelar contra as amarras democráticas, que resistem em defender a vida, em meio à morte anunciada da economia. Soma-se a isso nossa pouca afeição aos regimes democráticos, como bem demonstrou Yascha Mounk. “Pela primeira vez em décadas, a Freedom House ― que mede a abrangência do governo democrático no mundo ― registrou mais países se afastando da democracia do que caminhando para ela. Na expressão de Larry Diamond, uma ‘recessão democrática’ está em curso”, escreveu o professor alemão, em O povo contra a Democracia.

Então é mesmo o fim?

               Quando se pensa no mundo de dentro de um quarto, é comum que a melancolia assuma a racionalidade. Lá fora, o som de um pássaro parece um réquiem. Revisito minhas angústias, e cedo espaço para o bombardeio do pessimismo. É inevitável. O que salva? Para muitos, a experiência com altíssimo (seja ela qual for), para outros a terapia e para poucos a filosofia. Talvez Aristóteles, afinal, agora o mundo clama por equilíbrio, por mais paradoxal que seja. O homem só caminhará para a felicidade, que também pode ser chamada de “normalidade” em tempos de pandemia, se buscar o justo-meio. É o equilíbrio, a meio-termo entre o excesso e a falta. Pensar em vidas e em dinheiro, ainda que pensar em dinheiro seja mais prazeroso, mais forte.

               É evidente que esse não será o fim da odisseia humana na terra, mas sim um período para uma mudança que determinará o quão próximo ou distante estará o ponto final da história do homem. Arrisco um palpite: o fim sempre caminha próximo ao autoritarismo. Ele é o inimigo do meio-termo. Se não for afastado agora, poucos de nós estaremos, no futuro, dizendo às gerações vindouras como é viver em mundo pandêmico. Quem sabe não seja valoroso, nos tempos de peste, ouvir as vozes de uma mulher sagrada, como Tereza Batista, de Jorge Amado. Reza o seu ABC que ela venceu a praga e ensinou aos homens o que é força: “Valentia, companheiro, não é apanágio de quem provoca e briga, trocando tapas e tiros, exímio no punhal ou na peixeira pernambucana, tudo isso qualquer vivente pode fazer, dependendo da ocasião e da necessidade. Mas, para tratar de bexigoso, enfrentando o fedor e o choro, as ruas apodrecidas e o lazareto, não basta a coragem desses valentes de araque: além de culhões, é preciso ter estômago e coração”. 


Entre para ver ou adicionar um comentário

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos