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Joca Reiners Terron: 'Meus livros não têm condições de competir com as bizarrices que Bolsonaro fala em seu cercadinho'

Autor retorna a um futuro distópico em novo livro, ambientado em cidade repleta de moradores de rua e dominada pelas milícias
O escritor Joca Reiners Terron, autor de "O riso dos ratos" (Todavia) Foto: Renato Parada / Renato Parada
O escritor Joca Reiners Terron, autor de "O riso dos ratos" (Todavia) Foto: Renato Parada / Renato Parada

Joca Reiners Terron já tinha enveredado pelo futuro em “A morte e o meteoro” , romance de 2019 (publicado na França no ano seguinte) no qual ele imaginou a Amazônia reduzida a um punhado de árvores e os últimos remanescentes de uma tribo indígena forçados ao exílio. Em “O riso dos ratos”, ele volta a conceber um futuro distópico, desta vez numa grande cidade sem nome onde um pai só pensa em vingar a violência inominável sofrida por sua filha. Enquanto perambula por esse lugar apinhado de moradores de rua e onde até as farmácias são geridas por milícias, esse pai vaga pela trágica História do Brasil: vai de um supermercado abandonado convertido numa sinistra linha de montagem a um quilombo, a um latifúndio e a um navio negreiro até aportar na “origem”.

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Em entrevista ao GLOBO, por Zoom, o escritor nascido no Mato Grosso, radicado em São Paulo e que está passando o período de pandemia no Ceará, explica como a “sensação de cancelamento do futuro” inspirou a escrita de “O riso dos ratos” e comenta um controverso tuíte recente: ele sugeriu que os escritores brasileiros teriam mais sucesso em prêmios internacionais se não traíssem a literatura fazendo ciências sociais.

“O riso dos ratos” passa em revista a História brasileira de trás para frente, de um futuro distópico aos primórdios do país. Como a História serviu de matéria-prima ao romance?

A escrita dos meus dois últimos livros foi afetada pela sensação de cancelamento do futuro, de retrocesso, que está no ar desde antes de Bolsonaro chegar ao poder. Nossos ganhos civilizatórios se mostram mais frágeis a cada dia. O brasileiro é um traumatizado de guerra. Somos uma sociedade cuja noção de história, no sentido cronológico, está por um fio. À medida que perdemos direitos, somos jogados de volta no passado mais selvagem. A fragilidade da realidade, entre aspas, como queria Nabokov , norteou a escrita deste livro e do anterior.

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Por que você se aproximou da distopia nos seus dois últimos livros?

Sou reticente à classificação da literatura. Essa taxidermia é apropriada ao jornalismo e à crítica literária, mas não passa no horizonte do ficcionista. Vale discutir se faz sentido falar em distopia como gênero literário em países que ficaram a meio caminho da modernidade, como o Brasil e os latino-americanos. Nosso maior símbolo científico é o astronauta Marcos Pontes (ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação), o que já denuncia o nosso subdesenvolvimento . Cabe uma distopia num contexto tão atrasado social e cientificamente? Meus livros não têm condições de competir com as bizarrices que Bolsonaro fala em seu cercadinho.

A política está cada vez mais presente na literatura brasileira, inclusive nos seus livros. A que você atribui a politização da cena literária?

Toda a sociedade brasileira se politizou, não só a literatura. Os escritores da minha geração começaram a publicar durante os anos do PT no poder. A estabilidade econômica nos permitiu pensar em viver de literatura: escrevendo, traduzindo, editando, ensinado. A quase ausência da política nos romances dos anos 2000 é também um fato político, talvez fruto da alienação da minha geração.

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O que teria tornado essa geração de escritores alienada? A estabilidade econômica?

Uma revolução comportamental e econômica afetou toda a sociedade brasileira. Os escritores começaram a ter uma visão mais globalizada. Alguns livros poderiam ter sido escritos por um mexicano ou por um alemão, porque se passam em ambientes cosmopolitas e, a partir de determinada classe social, todas as grandes cidades se parecem com um enorme aeroporto. Há uma questão política imbricada na autoficção que se fez naqueles anos, na qual hoje podemos enxergar certo grau de alienação. Um romance é sempre metáfora do seu tempo, por mais alienado que ele seja.

Você causou polêmica no Twitter ao dizer que os brasileiros talvez fossem indicados a prêmios internacionais se não traíssem a literatura fazendo ciências sociais. O que você quis dizer com isso?

A literatura vem para desestabilizar o conhecimento das ciências sociais. Por isso, literatura deve ser livre, não se restringir moralmente e não ser usada para retratar de forma maniqueísta a consciência humana. É redutor usar a literatura como ferramenta de inserção social. À medida que a literatura exclui o perverso, o doentio, ela deixa de ser livre, de cumprir o seu papel, e se torna outra coisa. Literatura é imaginação. Não podemos restringir a ponto de não conseguirmos nos imaginar no lugar do outro.

A literatura brasileira está tentada a fazer ciências sociais?

Quando tuitei isso, não estava tentando agulhar nenhum autor, mas uma tendência que percebo no discurso acadêmico que pode estreitar os horizontes criativos. Na Argentina, por exemplo, a relação com a sociologia enriquece a literatura porque torna complexos alguns conceitos-chave da formação do país, mas sem atender a todos os preceitos ditados pelas ciências sociais. Quando A ngélica Freitas (poeta) escreve sobre feminismo, ela implode e explode conceitos. O feminismo se torna muito mais rico em possibilidades após a poesia dela devido à visada crítica que ela fornece. Se ela fizesse literatura engajada, sem crítica, o resultado não seria tão libertador como tem sido.

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O desejo de cumprir um certo código de honra masculino move a vingança do protagonista de “O riso dos ratos”, ainda que a filha o acuse de perpetuar a violência patriarcal. Por que você quis discutir a masculinidade neste livro?

Se eu dissesse que quis não estaria confessando ter feito ciências sociais e indo contra o que eu próprio predico? Será que o meu tuíte era sobre mim mesmo (risos)? Para mim, esse livro tem o valor simbólico de representar o fim da uma determinada masculinidade representada por esse pai. O último pai do mundo que carrega esse código de honra masculino, que ele próprio questiona e no qual não se reconhece. A violência que a filha sofreu é efeito da masculinidade que ele predica, por isso, ele não consegue nomeá-la. A partir daí, todas as palavras perdem o sentido. Nem ele, nem a filha, nem a cidade tem nomes. Ao chegar ao fim, à origem, ao se religar com o passado e com uma possibilidade de futuro, ele talvez possa voltar a chamar as coisas pelo nome. Ou renomear tudo.

Serviço:

“O riso dos ratos”

Autor: Joca Reiners Terron. Editora: Todavia. Páginas : 208. Preço: R$ 62,90.

Capa de 'O riso dos ratos', de Joca Reiners Terron (Todavia) Foto: Divulgação
Capa de 'O riso dos ratos', de Joca Reiners Terron (Todavia) Foto: Divulgação
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